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Linguagista

«Si mesmo»

Themselves

 

 

      «Qualquer frase pode conter uma falsidade. Mas as palavras em si mesmo não mentem.» Há muito venho reparando que mesmo falantes que deviam ser qualificados, como tradutores e jornalistas, entendem «si mesmo» como sendo invariável. Santo Deus, não é! Si mesmo, si mesma, si mesmos, si mesmas. Na oralidade, é tolerável, mas na escrita, é imperdoável.

      «Porém todas estas coisas, verdadeiramente grandes e espantosas e nunca vistas, ainda que na primeira apreensão parecem muito para temer, bem consideradas em si mesmas, e em seus efeitos e fins, antes são muito para sossegar, e aquietar os ânimos, que para intimidar ou perturbar» (Sermões, tomo III, António Vieira. Lisboa: Editores J. M. C. Seabra & T. Q. Antunes, 1854, p. 339 [Actualização ortográfica minha]).

 

[Texto 197]

Ortografia: «maria-vai-com-as-outras»

Ora pois

 

 

      «Foi o meu grande amigo Rui Zink, corrigivelmente de esquerda, o primeiro a descobrir Pedro Passos Coelho como um agente do nosso futuro. Foi no Algarve, há muito tempo. Convenceu não só a Maria João, já convencida, como o Manuel Serrão e eu — que sou uma Maria-vai-com-as-outras, nem que seja por uma questão de educação» («Ora pois», Miguel Esteves Cardoso, Público, 21.06.2011, p. 39).

      A frase fica assim: «Convenceu não só a Maria João, já convencida, como o Manuel Serrão e eu»? No texto todo (citei somente um excerto), também faltam algumas vírgulas. E é maria-vai-com-as-outras que se escreve — temos de impedir que os computadores nos ensinem a escrever. (É pena os revisores continuarem a ter medo do simpático Miguel Esteves Cardoso.)

 

[Texto 196]

Tradução: «night club»

Os morfinómanos do clube nocturno

 

 

      Aqui a nossa protagonista cantava «folksongs in a night club». O tradutor quer que seja numa discoteca. Há trinta anos, teria certamente traduzido por «boîte» (ou «boate», como também se lê por aí, adaptado pelos Brasileiros). Mas no caso, a história passa-se nos anos 30, dir-se-á melhor «clube nocturno», creio. São, decerto, os três locais de recreio onde se pode ouvir música, dançar e tomar bebidas, mas há diferenças quanto aos períodos em que se usaram ou usam.

      «O palco desta mudança era o clube nocturno. Se, até à guerra, “o máximo de desequilíbrio boémio de Portugal era o abuso de licores”, depois “e com o falso e verdadeiro cosmopolitismo […], importamos um carregamento completo de drogas”» (Os Nightclubs de Lisboa nos Anos 20, Júlia Leitão de Barros. Lisboa: Lucifer Edições, 1990, p. 76).

 

 

[Texto 195]

Tradução: «mansions»

Porque há quem se esquece

 

 

      Muito bem: mansion é, além de casa senhorial, termo que se começou a usar no século XIV, também, no plural, sabe-se lá porquê, prédio de apartamentos. Contudo, na tradução, é preciso ver se não é no singular (e habitualmente é) que se tem de traduzir: «o prédio». Quanto a «block of flats», dir-se-á melhor «prédio de apartamentos».

 

 

[Texto 194]

«Brande/brandy; uísque/whisky»

No brandy this time, dear?

 

 

      Já sabem, porque eu já contei, que em certas editoras se proíbe o aportuguesamento «uísque». Em relação a «brande», nunca vi nada. Mas agora pensem: na mesma página o tradutor escreveu «uísque» e brandy. «Uísque» será mais usado do que «brande»? É motivo suficiente para se admitir, numa tradução do inglês, o primeiro e rejeitar o segundo? Uma boa questão. Brande, só se for Brande-Hörnerkirchen.

 

[Texto 193]

Concordância com percentagens

Pior do que Por uma Vida Melhor

 

 

      Esqueçam a cruzada contra o Acordo Ortográfico de 1990. Resolvam estes problemas: «Numa sondagem da “Metroscópia”, 81 por cento dos inquiridos considerava que os “indignados” tinham razão, e 84 em cada 100 opinava que as preocupações do movimento correspondiam aos problemas reais dos cidadãos» («Os “indignados” chegaram a uma encruzilhada», Nuno Ribeiro, Público, 20.06.2011, pp. 2-3).

      Quando o sujeito é composto por uma expressão de percentagem no plural (no caso, «81 por cento») seguida de um termo preposicionado (no caso, «dos inquiridos»), o verbo concorda com o termo preposicionado que especifica a referência numérica: se o termo estiver no singular, o verbo vai para a 3.ª pessoa do singular; se estiver no plural, vai para a 3.ª pessoa do plural. Difícil? Em «84 em cada 100 opinava», ainda é mais flagrante a necessidade de haver concordância. Embora nesta oração se omita o especificador, mais óbvio, se assim podemos dizer, se torna a necessidade de o verbo concordar com o número.

      Última nota: uma «sondagem da “Metroscópia”» é equivalente, imagino, a uma «sondagem da “Marktest”»... O nome é Metroscopia, e, sendo um instituto de investigação social e de opinião, não precisa de aspas.

 

[Texto 192]

Acordo Ortográfico

O denunciante denunciado

 

 

      Hoje já ninguém se lembrará, mas ontem não terão sido poucos os leitores do Público que terão pensado como o texto de Nuno Pacheco estava escrito assim-assim mas mal pensado. E, por paradoxal que possa parecer afirmá-lo aqui, teria sido preferível o contrário. Vejamos. O título já prometia vindicta ou denúncia: «O caçador caçado». Começa assim: «Há muitas maneiras de dizer isto. Buscar lã e ser tosquiado, virar-se o feitiço contra o feiticeiro, caçador caçado. O significado é o mesmo, só as palavras mudam. No caso, retrata bem uma polémica que estalou no Brasil há mais de um mês e que ainda se desenrola, com estrondo mas sem desfecho à vista.» Refere depois o tal livro de que já aqui falei e entra então o «caçador caçado»: «Francisco Marins, presidente da Academia Paulista de Letras, escreveu e fez divulgar um texto inflamado onde acusa a “infeliz publicação” de aconselhar a que os alunos brasileiros escrevam, “sem nenhum castigo, mesmo em provas escolares, palavras e expressões de linguagem oral, chula, como estas: os menino pega peixes ou nois vai, nois vem, nois fica”.» Bem, parece-me meritório que alguém chame a atenção para os disparates que se vão fazendo. Nuno Pacheco, neste ponto, não parece divergir desta opinião. Introduz outra personagem secundária e prossegue assim: «O curioso é que tal polémica surja em plena aplicação do Acordo Ortográfico, pretensamente assinado para “facilitar” o ensino (no Brasil, dir-se-ia aprendizado).» Dá depois um exemplo irrelevante, para atingir o número de caracteres que lhe fora atribuído, e eis o parágrafo final: «Ora Francisco Marins, que tanto se indigna com o duvidoso livro, orgulha-se, na mesma missiva, de ter colaborado em Lisboa no Acordo Ortográfico, que mais não é do que, a pretexto da unificação linguística, a caixa de Pandora ideal para todos os erros, tergiversações e analfabetismos. É o caçador caçado. E na armadilha que montou.»

      Querem ver que a colaboração, independentemente de qual tenha sido, de Francisco Marins na redacção do Acordo Ortográfico deslegitima, para todo o sempre, qualquer intervenção sua relacionada com a língua no espaço público? E, vamos lá, não sou defensor do AOLP90, de que já apontei erros e lacunas e não estou sequer a aplicar, e preferia mesmo nunca ter de vir a fazê-lo, mas esta implicação (refiro-me à relação de consequência, não à embirração, que também transparece) não tem pés nem cabeça.

 

[Texto 191]

Sobre «recente»

Que aconteceu há pouco

 

 

      «“Utópico” deriva de “utopia”, que por sua vez é uma palavra relativamente recente. Foi inventada pelo filósofo Thomas More em 1516 e deu título ao livro Utopia. […] E foi do impacto deste livro que derivou o “ser utópico” enquanto ser irrealista, quimérico, acreditar no irrealizável» (Lugares Comuns, Mafalda Lopes da Costa. Antena 1, 20.06.2011).

      A percepção do tempo, já sabemos, é eminentemente subjectiva, mas não abusemos. «Relativamente recente»! Se Mafalda Lopes da Costa estivesse a escrever no século XVII, ainda se compreendia a afirmação. A segunda frase só com muito boa vontade se compreende. Decorre do defeituoso cumprimento do objectivo inicial do programa: divulgar e explicar expressões. «Ser utópico» é então a expressão... Um absurdo. O serviço público no seu melhor.

 

[Texto 190]