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Linguagista

«Arcansas»

E amanhã, como será?

 

 

      Ena, ena, agora não é só no Diário de Notícias que os topónimos estrangeiros são aportuguesados. «Yoshinaga viria a conhecer também os campos de concentração de Jerome e Rohwer, no Arcansas, mas primeiro foi para Manzanar» («Aiko anda à procura das palavras certas sobre os campos de concentração dos EUA», Isabel Gorjão Santos, «P2»/Público, 24.06.2011, p. 4).

      Claro que há-de ser um caso isolado, esporádico. Amanhã já não será assim, suspeito. É o problema de muitos jornais: os acertos de hoje não chegam ao dia de amanhã. Aliás, o que está correcto soa-lhes invariavelmente a errado.

      «Algo semelhante estará na origem do sucedido no Arcansas e na Luisiana. […] A hipótese de envenenamento ou doença contagiosa está excluída no caso do Arcansas» («Milhares de pássaros caem do céu na Suécia e nos EUA», Abel Coelho de Morais, Diário de Notícias, 6.01.2011, p. 24).

 

[Texto 213]

Ortografia: «hipoalergénico»

Nem inventado

 

 

      «As lâminas propriamente ditas são em safira, hipo-alergénicas e praticamente à prova de corrosão» («Lâminas eternas», João Pedro Pereira, «P2»/Público, 24.06.2011, p. 3).

      Não me lembro de nenhum vocábulo que contenha o prefixo hip(o)- que leve hífen. Nem inventando, pois as regras aplicam-se sempre para os termos existentes e para os que venham a existir.

      E pronto, são estes os erros habituais do Público — comezinhos mas abundantíssimos. E mesmo quando parece que acertam, erram.

 

[Texto 212]

 

«Pudico/púdico»

A língua vai nua

 

 

      «Pudico — Não se diga púdico, com o acento tónico no u. Diga-se pudíco, com o acento tónico no i, respeitando assim a acentuação latina» (Dicionário de Erros e Problemas de Linguagem. Lisboa: Livraria Clássica Editora, 4.ª ed., 1995, p. 359).

      Já é a segunda vez que hoje cito Rodrigo de Sá Nogueira, um estudioso que nem sequer aprecio muito. Justifica-se, porém, por ser, de momento, a obra que tenho à mão para tratar de um caso que vejo aqui no Público: «O fim-de-semana que está à porta também dará oportunidade para os mais púdicos pedalarem vestidos nas ruas de Lisboa e não só: amanhã à tarde realiza-se o Cycle Chic Lisboa e, no domingo de manhã, quem quiser poderá atravessar a Ponte Vasco da Gama com a sua bicicleta» («Ciclistas vão pedalar por Lisboa sem roupa e sem preconceito em defesa do ambiente», Inês Boaventura, Público, 24.06.2011, p. 18).

      Não há estudioso da língua decente que aceite a «variante» (como alguns querem) esdrúxula. Hildo Honório do Couto afirma que se trata de uma hipercorrecção, e escreve: «É que o português não aprecia o padrão acentual proparoxítono. Tanto que ele mal chega a 10% das palavras da língua, sendo que as oxítonas perfazem cerca de 20%. As paroxítonas é que são preferidas, pois nelas entram 70% das palavras. Pois bem, pensaria o falante das variedades estigmatizadas, “pudico” é muito caseiro muito feijão-com-arroz, por ser paroxítono. Na linguagem culta deve ser “púdico”, porque, assim falando, “está falando bem, como o homem da cidade”» (Ecolingüistica, Hildo Honório do Couto. Brasília: Thesaurus, 2007, p. 405).

 

 

[Texto 211] 

«Organograma/organigrama»

Até os erros estrangeiros copiamos

 

 

      «O PÚBLICO pedia a Marina Costa Lobo e António Costa Pinto que avaliassem o organigrama do XIX Governo de Portugal» («Equipa pequena pode aumentar risco de desgoverno», Nuno Sá Lourenço, Público, 24.06.2011, p. 6).

      Pois é, mas Rodrigo de Sá Nogueira escreveu no Dicionário de Erros e Problemas de Linguagem que «esta é errada, deve-se evitar. Em organismo, organista e organizar entram o radical organ + os sufixos -ismo, -ista, -izar. — Escusado será dizer que não foi nenhum português que criou a forma organigrama: ela foi pura e simplesmente adaptada do neologismo francês organigramme, cuja formação, se não estou em erro, não é regular em francês. O que seria regular em francês, creio eu, seria organogramme, paralelamente a organogénie, organographie, organoplastie, organoscopie» (Lisboa: Livraria Clássica Editora, 4.ª ed., 1995, pp. 314-15).

    Para agravar, muitos dicionários nem sequer distinguem, registando como se ambas fossem igualmente legítimas.

 

[Texto 210]

«Zona dos Mármores»

Ao passo que Zona Euro...

 

 

      «Essa ideia “morreu” por “razões económicas”, afirma o presidente da câmara, Luís Caldeirinha Roma (PS), mas manteve-se a vontade de dar uma nova utilidade, ligada à cultura, àquela exploração, que é uma das que povoam a paisagem da Zona dos Mármores» («Vila Viçosa vai transformar uma pedreira em cenário para espectáculos musicais», Maria Antónia Zacarias, Público, 24.06.2011, p. 20).

      Lembram-se, certamente, porque até já aqui foi tratado, que no Público escrevem sempre «zona euro». Agora, ficamos a saber que grafam «Zona dos Mármores». Com maiúsculas, porque é uma coisa mais física...

 

[Texto 209]

«Presidenta»?

Isto vai passar-lhes, coitados

 

      Luís Miguel Queirós (de chapéu?) escreve hoje um artigo no Público sobre o uso da forma «presidenta», agora relançado imprudentemente por Miguel Relvas no Parlamento. Com a devida vénia, reproduzo-o na íntegra.

 

      «No documentário José & Pilar, de Miguel Gonçalves Mendes, há um momento em que Pilar del Río se abespinha com um jornalista que a trata como “presidente” da Fundação José Saramago. Pilar explica que é “presidenta”, argumentando que se a palavra não se usava no passado, isso se devia à circunstância de os presidentes serem todos homens. E quem seguiu em Portugal, pela televisão, a recente tomada de posse de Dilma Rousseff, fartou-se de ouvir a palavra “presidenta”.

      Na terça-feira, o novo ministro dos Assuntos Parlamentares, Miguel Relvas, aderiu à moda e referiu-se a Assunção Esteves, que acabava de ser eleita presidente da Assembleia da República, como “presidenta”.

      Afinal, “presidenta” — o Dicionário da Academia não regista a palavra, mas o da Porto Editora aceita-a como neologismo — é ou não português correcto? O professor António Emiliano, do departamento de Linguística da Universidade Nova de Lisboa, não tem a menor dúvida: “‘Presidenta’ não é português”. Dado que “presidente” é um substantivo de terminação invariável, comum aos dois géneros, quando queremos precisar se o presidente em causa é um homem ou uma mulher devemos recorrer ao artigo (o/a), esclarece o linguista, ou a um outro qualquer determinante (aquele/ aquela; esse/essa).

      Emiliano acrescenta que a eventual adopção oficial da forma “presidenta” para designar a nova presidente do Parlamento “seria absolutamente lamentável”, já que, observa, “as instituições do Estado devem dar exemplo de correcção e rigor”. O linguista alerta ainda para o risco de se estar a “abrir a porta” a outros “barbarismos” afins, como “tenenta”, “agenta”, “comandanta” ou... “ignoranta”.

      Mesmo sem entrar em terrenos demasiados técnicos, enquadrando “presidente”, e outras palavras portuguesas de idêntica terminação, no desaparecido particípio presente que o português antigo herdou do latim, qualquer falante de português intui que “presidente” é aquele ou aquela que preside. Ou seja, como assinala António Emiliano, “a palavra remete mais directamente para a acção do que para as características do sujeito da acção”.

      O argumento invocado por Pilar del Río parece sugerir que, por detrás da tentativa de vulgarizar o termo “presidenta”, estará o propósito de garantir a igualdade de géneros também em matéria de língua. Mas pode contrapor-se que impor um feminino a uma palavra que não distingue géneros é, pelo contrário, um gesto sexista, que cria uma diferença onde ela não existia. Em termos estritamente gramaticais, tratar Assunção Esteves como “presidenta” é exactamente tão arbitrário como chamar “presidento” a Cavaco Silva.

      Como ninguém diz “agenta” ou “agento”, “adolescenta” ou “adolescento”, “clienta” ou “cliento”, “presidenta” — e o mesmo sucederia com “presidento” — surge como uma excepção sem precedentes e que, por isso mesmo, nos soa mal. E não será descabido argumentar que este “soar mal” tem consequências semânticas, emprestando à palavra um tom ligeiramente achincalhante.

      É claro que, na linguagem falada, muitas autarcas já terão sido tratadas como “a nossa ‘presidenta’ da junta”, e que ninguém se espantaria por ouvir um merceeiro dizer que a D. Fátima é a sua melhor ‘clienta’. Quando são reconhecidamente frequentes, estes usos populares devem ser registados, enquanto tal, nos dicionários. Não devem é ser acriticamente integrados na norma culta da língua, pela qual o Estado tem a obrigação constitucional de zelar.

      Argumentar-se-á que se as televisões nos martelarem diariamente com a palavra “presidenta”, e os jornais forem atrás, e já agora os professores, um dia os nossos netos nem saberão que houve um tempo em que não se chamava “presidentas” aos presidentes do sexo feminino. Talvez tenham razão. De resto, se recuarmos o suficiente, encontraremos exemplos de palavras que eram comuns aos dois géneros e que, posteriormente, vieram a ter uma forma masculina e outra feminina. É o caso, lembra António Emiliano, de “senhor” no português medieval.

      Mas o linguista (ou será o “linguisto”?) também recorda que só a partir da segunda metade do século XVIII, com os primeiros esforços de dicionarização, se pode falar de uma norma-padrão para o português. E uma das vantagens de possuirmos este instrumento é justamente a de podermos controlar a entrada de usos populares, corruptelas, neologismos e modismos no uso autorizado da língua. Prescindir desta fiscalização deixaria a escrita do português entregue ao livre-arbítrio de cada escrevente e “escreventa”. Algo que parecerá simpaticamente anárquico, mas que só poderia ser descrito, e por uma vez com propriedade, como um retrocesso civilizacional» («Assunção Esteves é presidente ou “presidenta”?», Luís Miguel Queirós, Público, 24.06.2011, p. 8).

 

[Texto 208]