Não é só cá
Um leitor descobriu lá em casa um recorte de um artigo do Jornal de Notícias de 8 de Dezembro de 1990. O título é: «Profunda reforma da ortografia francesa». Graficamente, é um primor, com antetítulo («Paris altera três mil palavras») e subtítulo («É a primeira proposta vitoriosa em 200 anos»), as três linhas com caracteres de alturas bem diferentes. No lead, lê-se: «Os partidários da reforma da ortografia francesa obtiveram ontem uma vitória com a publicação na folha oficial de alterações à grafia de cerca de três mil palavras e a adopção de novas regras na formação dos neologismos científicos e técnicos.» e, por fim, no corpo da notícia pode ler-se: «Para tentar calar os protestos dos puristas, evitou-se a expressão “Reforma ortográfica” e adoptou-se a designação “Rectificações ortográficas”, sublinhando-se que não há uma rotura com os princípios habituais da ortografia francesa, mas um esforço das regras pela limitação das excepções.
A guerra da reforma ortográfica, que opõe há séculos os defensores do “statu quo” e os reformadores, foi relançada em 26 de Novembro de 1988 com a publicação, no semanário dos professores primários, dos resultados de um inquérito: 90% de respostas favoráveis a uma simplificação prudente e progressiva.
Em 2 de Junho de 1989, o primeiro-ministro Michel Rocard criou o Conselho Superior da Língua Francesa, que elaborou, com a participação de representantes da Bélgica e do Quebeque, o projecto de simplificação aprovado por unanimidade pela Academia Francesa.
Exemplos desta revolução que faz eriçar os cabelos dos puristas da língua francesa: “nenufar” deixa de se escrever “nenuphar”; o acento circunflexo caiu na palavra “abime”; “punch” transformou-se em “ponch” e “sage-femme” (parteira) passa a “sagefemme”.
A nova reforma ortográfica começará a ser aplicada nas escolas francesas a partir do próximo ano lectivo, mas a antiga ortografia continua a ser tolerada na edição de livros.
Esta reforma toca essencialmente em seis pontos:
– Supressão, em muitas palavras, do traço de união (croquemonsieur, portemonnaie, cineclub).
– Nas palavras compostas desaparece o “s” no singular (compte-goutte, chasse-neige), enquanto no plural, junta-se sistematicamente a indicação do plural (compte-gouttes, chasse-neiges).
– Supressão do acento circunflexo em centenas de palavras (ile, out), mas manutenção nos casos em que permite distinguir homógrafos, no pretérito perfeito e no conjuntivo e nos nomes próprios.
– Os particípios passados dos verbos reflexos (se laisser e se promener), seguidos de infinito, passam a ser invariáveis (elle s’est laisse mourir, on les a laisse frapper).
– Centenas de palavras de origem estrangeira passam a escrever-se sem hífen e a formar o plural como em francês (whiskys em vez de whiskies, cow-boy em vez de cowboy).
– Correcção de algumas anomalias: ballottage passa a ballotage, oignon a ognon).
Comentando esta reforma, apoiada pelo Ministério da Educação e pela maioria dos professores e editores, o primeiro-ministro francês minimizou a sua amplitude.
“As propostas de rectificação eram necessárias, são limitadas e respeitam a história da nossa língua, afirmou ontem Michel Rocard.
Desde 1789 foram feitas mais de dez tentativas de reforma, mas nunca conseguiram ir até ao fim. Desta vez, os reformadores parecem ter obtido, enfim, uma vitória.»
[Texto 1876]