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Linguagista

Tradução: «je me demandais»

Pergunto a mim próprio

 

 

      Ersílio Cardoso na tradução de Silbermann, de Jacques de Lacretelle (Lisboa: Edição Livros do Brasil, «Colecção Miniatura», s/d).

  1. «Mas esse sopro, perguntava eu a mim próprio, não seria antes a alma dum génio misterioso que habitava nele?» (p. 21) («me demandai-je»).
  2. «E, com infinita inquietação, perguntava a mim próprio se a escolha, pelo poder divino, desta igreja católica como lugar de punição não era um sinal que devia fazer-me abjurar...» (p. 64) («je me demandais»).
  3. «E eu perguntava a mim próprio se os sentimentos de minha mãe não se tinham sempre assim dissimulado sob roupagens austeras» (p. 99) («et je me demandais»).

 

[Texto 2652] 

«A fim de/afim»

Não faz mal lembrar

 

 

      «Também, em Aiguesbelles, o meu avô dava ordem, na primavera, para que algumas videiras não fossem podadas, afim de que ele próprio, passeando nos seus domínios, pudesse ter o prazer de lhes aplicar o podão» (Silbermann, Jacques de Lacretelle. Tradução de Ersílio Cardoso. Lisboa: Edição Livros do Brasil, «Colecção Miniatura», s/d, pp. 15-16).

      Continuo a ver este erro com alguma frequência, por vezes na pena de quem julga escrever bem. Ersílio Cardoso continua a ter um pouco, só um pouco, de desculpa, pois no original está «afin que lui-même». Na língua francesa, a locução é afin que.

 

[Texto 2651]

Tradução: «à l’abri de»

Evite-se a cópia

 

 

      «Que êxito, quando (muitas vezes graças a uma hábil dissimulação) eu me sentia ao abrigo de toda a curiosidade» (Silbermann, Jacques de Lacretelle. Tradução de Ersílio Cardoso. Lisboa: Edição Livros do Brasil, «Colecção Miniatura», s/d, p. 15).

      Tem a desculpa, acho eu, de estar a traduzir do francês, no qual se lê: «Quel succès, lorsque (souvent grâce à une habile dissimulation) je me sentais à l’abri de toute curiosité!» Sem o galicismo e dislate anfibológico da locução prepositiva, como disse Mário Barreto, seria protegido contra, protegido de.

      Vasco Botelho de Amaral no Grande Dicionário de Dificuldades e Subtilezas do Idioma Português (Lisboa: Centro Internacional de Línguas, 1958, p. 17): «Abrigo. Evite-se a cópia do francês à l’abri de. Em vez de “ao abrigo dessa disposição”, por exemplo, dir-se-á: graças a essa disposição, por meio dessa disposição. (D. D.). Aliás, ao abrigo da lei (e ditos semelhantes) veio do italiano, por via francesa. A dição está muito vulgarizada.»

 

[Texto 2650]

Tradução: «rang»

Dormir na forma

 

 

      «Ao dizer estas palavras, mostrava-me um rapaz que estava à porta da aula, à frente da forma, e que eu não me recordava de ter visto no ano anterior em nenhuma das turmas do terceiro ano» (Silbermann, Jacques de Lacretelle. Tradução de Ersílio Cardoso. Lisboa: Edição Livros do Brasil, «Colecção Miniatura», s/d, p. 9).

      Não atinamos logo que «forma» é aquela. O original esclarece-nos: «en tête des rangs». Ah. Fila, fileira. É a 9.ª acepção do respectivo verbete no Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora: «MILITAR disposição ordenada de tropas; formatura». A Ersílio Cardoso, que já atrás traduzira da mesma maneira — «O tambor rufou. Fomos para as formas» (p. 9) —, não ocorreu nada de melhor.

 

[Texto 2649]

«Mau grado/malgrado»

Fica o aviso

 

 

      «Salve-se, em parte, o verbete de João Palma Ferreira no Grande Dicionário dirigido por João José Cochofel, companheiro de Abranches em Coimbra, e louve-se, mau grado os erros da data de nascimento e da data da partida para o Brasil, o verbete do companheiro de Moçambique Ilídio Rocha, no Dicionário Cronológico de Autores Portugueses» («Augusto dos Santos Abranches, o rumor de uma vida», Arnaldo Saraiva, Público, 4.03.2013, p. 47).

      Consultei meia dúzia de dicionários e só segundo um deles — o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora — «mau grado» significa o que o texto acima exige. Ou seja, para todos eles, excepto para o da Porto Editora, malgrado é que significa apesar de, não obstante, ao passo que mau grado significa má vontade, desagrado. Lembramo-nos logo, é claro, da preposição francesa malgré, de que o Dicionário de Francês-Português da Porto Editora dá a seguinte tradução: «apesar de; não obstante; contra vontade; a despeito de; mau grado». (Pelo menos desta vez, há coerência.) E é também este verbete, malgré, que consulto no Grande Dicionário de Dificuldades e Subtilezas do Idioma Português (3088 páginas!), de Vasco Botelho de Amaral: «Esta palavra aparece de quando em quando em nossa prosa, onde é de todo inadmissível. Deve traduzir-se por: apesar de, a despeito de; mau grado, etc. Malgré lui, isto é, a seu pesar, em que lhe pese, contra sua vontade, mau grado seu, pois grado significa em português: gosto, vontade, consentimento (latim gratu-). Malgré tout verte-se para: apesar de tudo; suceda o que suceder; não obstante, embora; a despeito de tudo; sem embargo, etc. A expressão bon gré, mal gré deve traduzir-se: de bom ou mau grado, com vontade ou sem ela, por bem ou por mal, quer sim quer não, quer queira quer não» (p. 370, Vol. II).

      Até por esta divergência no que registam os dicionários, não tenho quaisquer dúvidas de que se verá de tudo, e carrear para aqui exemplos seria tarefa em parte inútil. Suspeito mesmo que se encontrarão exemplos contraditórios num mesmo autor.

 

[Texto 2648]