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Linguagista

Exorcismo

Exorcismo  

Carlos Drummond de Andrade

 

Das relações entre topos e macrotopos

Do elemento suprassegmental,

Libera nos, Domine.

 

Da semia

Do sema, do semema, do semantema,

Do lexema,

Do classema, do mema, do sentema,

Libera nos, Domine.

 

Da estruturação semêmica,

Do idioleto e da pancronia científica,

Da realibilidade dos testes psicolingüísticos,

Da análise computacional da estruturação silábica dos falares regionais,

Libera nos, Domine.

 

Do vocóide,

Do vocóide nasal puro ou sem fechamento consonantal,

Do vocóide baixo e do semivocóide homorgâmico,

Libera nos, Domine.

 

Da leitura sintagmática,

Da leitura paradigmática do enunciado

Da linguagem fática,

Da fatividade e da não-fatividade na oração principal,

Libera nos, Domine.

 

Da organização categorial da língua,

Da principalidade da língua no conjunto dos sistemas semiológicos,

Da concretez das unidades no estatuto que dialetaliza a língua,

Da ortolinguagem,

Libera nos, Domine.

 

Do programa epistemológico da obra,

Do corte epistemológico e do corte dialógico,

Do substrato acústico do culminador,

Dos sistemas genitivamente afins,

Libera nos, Domine.

 

Da camada imagética

Do estado heterotópico

Do glide vocálico

Libera nos, Domine.

 

Da lingüística frástica e transfrástica,

Do signo cinésico, do signo icônico e do signo gestual

Da clitização pronomial obrigatória

Da glossemática,

Libera nos, Domine.

 

Da estrutura exossemântica da linguagem musical

Da totalidade sincrética do emissor,

Da lingüística gerativo-transformacional

Do movimento transformacionalista,

Libera nos, Domine.

 

Das aparições de Chomsky, de Mehler, de Perchonock

De Saussure, Cassirer, Troubetzkoy, Althusser

De Zolkiewsky, Jacobson, Barthes, Derrida, Todorov

De Greimas, Fodor, Chao, Lacan et caterva

Libera nos, Domine

Os jornalistas e a gramática

Não ouvi, mas acredito

 

 

      «Quando eu pensava que já tinha visto/lido/ouvido tudo», escreve-me um leitor do Linguagista, «eis que vem a TSF desenganar-me. No seu noticiário das 17 horas de hoje, numa peça sobre alegadas acusações da empresa Parvalorem à administração do BPN nacionalizado, o jornalista [José Milheiro] disse o seguinte: “Ataques, insinuações, insídia e manobras – são estes os adjectivos utilizados pelos antigos administradores do BPN nacionalizado para classificarem a posição da Parvalorem reflectida na edição de hoje do Diário de Notícias”.»

      Talvez supere tudo o que, de semelhante, já tenho lido ou ouvido, pois, no caso, não há sequer um adjectivo.

 

  [Texto 3456]

Léxico: «legiferar»

A legífera

 

 

      «Como costumam dizer os vigaristas da nossa política, sou insuspeito nesta matéria: não gosto de gatos, nem de cães. Mas também não gosto que o Estado se intrometa na minha vida ou na vida dos portugueses. Descobri esta semana com espanto que a sra. Ministra da Agricultura resolveu legiferar sobre o número de animais que um cidadão pode ter em casa» («2 cães, 4 gatos e a loucura do Governo», Vasco Pulido Valente, Público, 1.11.2013, p. 52).

      Merece figurar aqui, porque raramente se usa o verbo legiferar. Mas, na primeira frase, a vírgula antes da conjunção é pura excrescência: não gosto de gatos nem de cães. Ele. Eu gosto de cães e de gatos.

 

  [Texto 3455]