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Linguagista

Tradução: «recipient», de novo

Com molho à lionesa

 

 

    Tenho de passar pela Ikea para comprar um certo recipiente. De caminho, claro, vou comer alguns cachorros-quentes, agora já sem carne de cavalo (que pena). Espero, isso sim, que não esteja à venda um recipientes destes: «– Mal posso esperar. – Dennis mordeu o lábio inferior, rosado de excitação por ser o recipiente de tão imperiosas instruções. Sorriu ao sargento Troy, um sorriso tão doce e enjoativo como o mil-folhas que estava a consumir. – Acho que o sargento não gosta das castanhas à lyonnaise, mãe» (Morte na Aldeia, Caroline Graham. Tradução de Mário Dias Correia. Alfragide: Asa II, 2013, p. 122).

 

  [Texto 3906]

Sobre o verbo «avocar»

E está certo

 

 

      «João Gouveia, único sobrevivente do grupo dos sete, era para ter sido ouvido ontem pela Polícia Marítima. Mas a audição foi adiada e será já o procurador-coordenador do Tribunal do Círculo de Almada que o ouvirá, segundo a SIC. A Procuradoria-Geral da República (PGR) limita-se a confirmar que o inquérito foi avocado pelo procurador de Almada. E que “serão realizadas todas as diligências adequadas ao esclarecimento das circunstâncias em que ocorreram as mortes”. A investigação “não é orientada para pessoas determinadas”, porque não há, até ver, indícios de prática de crime» («Investigação a acidente do Meco muda de mãos e está em segredo de justiça», Andreia Sanches e Catarina Gomes, Público, 22.01.2014, p. 6).

      Já uma vez, no Assim Mesmo (com um milhão de visualizações, apesar de abandonado) tínhamos tratado da regência do verbo «avocar». Aqui, está correcto.

 

  [Texto 3905] 

Ortografia: «chantili»

Nunca antes o provei

 

 

   «O padre Vítor Sousa foi confrontado com fotos de Luís Mendes vestido de mulher, em poses eróticas, e com ex-seminaristas “em trajes menores”, em “tronco nu”, com “chantili” e “na cama”, tendo afirmado que nenhuma correspondia a praxe em que tivesse participado ou assistido, como sustentou o antigo vice-reitor do seminário» («Padre pede anulação de testemunhos por não terem sido gravados em vídeo», Mariana Oliveira, Público, 22.01.2014, p. 4).

     Creio que é a primeira vez que vejo a palavra aportuguesada. Está no Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, que, contudo, remete para «chantilly».

 

  [Texto 3904]

Os parênteses discriminadores

Mais palavras, mais disparates

 

 

      «Haverá coisas bem mais graves, a começar pela desigualdade real (e não semântica) entre géneros em Portugal, mas quando um Governo faz questão de se empenhar tanto, a ponto de elaborar planos nacionais e encomendar um estudo a propósito, o mínimo que se lhe exige é que seja o primeiro a dar o exemplo. Ora não é isso que sucede nos textos dos próprios planos governamentais, quando o género feminino aparece não em pé de igualdade gráfica mas entre parênteses. Ou seja, em lugar de lermos “conselheiro/a”, lemos “conselheiro(a)”. Sendo que o parênteses remete para uma indicação acessória, enquanto a barra sugere uma representação simétrica. Tão empenhado nesse aleijão técnico que é o acordo ortográfico, o Governo podia, ao menos, esforçar-se por seguir as regras que ele próprio estabelece em matéria de “linguagem inclusiva”. Pelos vistos, é mais lesto a aceitar erros como lei de escrita do que a seguir regras de senso comum» («A igualdade entre parênteses», editorial, Público, 22.01.2014, p. 44).

      Quer dizer, para o inefável editorialista, a igualdade é estabelecida ou indicada, na escrita, pela barra (que ele/ela deve conhecer por slash), pois que os parênteses são claramente discriminadores. Ainda vai acabar por defender o estabelecimento de quotas para estes inócuos sinais gráficos. Esta vai para a galeria, para o florilégio.

 

  [Texto 3903]

Tradução: «socialize»

Estamos cercados

 

 

      «– Só de vista. Não socializo muito na aldeia. Os... engates que faço são todos no Bull, para os lados de Gessler. Ou em Causton» (Morte na Aldeia, Caroline Graham. Tradução de Mário Dias Correia. Alfragide: Asa II, 2013, p. 227).

     I don’t socialize. Temos de chamar o António para vos pôr na linha, seus vermelhos. Agora ide prestes, convivei com a verdadeira literatura portuguesa.

 

  [Texto 3902]

Um «local» na Madeira

Estão por todo o lado

 

 

   Na Antena 1, estão a falar da criança de 18 meses que estava desaparecida desde domingo na Madeira. O repórter David Sousa, «no meio do curso de água da levada na Calheta», lá foi falando de um «local» (naquela acepção avariada que vimos aqui) que lhe deu não sei que informação. Os jornalistas, entretanto, vai perdendo tempo a falar com médicos: a hipotermia, a fome, a sede, etc. Pura ignorância. Como se fosse preciso ter mais de dois neurónios para perceber que a criança foi lá abandonada hoje mesmo. Até apetece gritar em itálico e, sei lá, bramir o estandarte.

 

  [Texto 3901]

Tradução: «italically»

Gritar em itálico?

 

 

     «– Sim, senhorgritou o sargento Troy em itálico, saindo do centro de operações a trote rápido e descendo até à cave» (Morte na Aldeia, Caroline Graham. Tradução de Mário Dias Correia. Alfragide: Asa II, 2013, p. 277).

    Sim, no original está italically, mas será a melhor tradução? Não será antes qualquer coisa como «enfaticamente», por exemplo?

 

  [Texto 3900]

Português descontraído

Afinal, até eles estranham

 

 

      Para mim, era mais uma, e não das menos significativas, diferenças entre o português daqui e o português de lá. Mas eis que o espanto do cantor, compositor e escritor brasileiro Caetano Veloso se vem juntar ao nosso espanto: «Dê um rolê: você não vai encontrar a contração da preposição “em” com o artigo indefinido em nenhum texto impresso no Brasil em tempos recentes. Mesmo na biografia de Alexandre Frota, em que o português é tratado com demasiada licença, repete-se, até nas transcrições de falas do biografado, a suposta fineza de grafar a preposição separada do artigo. Me lembro (e aqui vai uma homenagem irônica, tanto aos linguistas quanto aos defensores da gramática da norma culta) de ter exposto minha estranheza em relação ao abandono do “num” e do “numa” (e, consequentemente, é claro, do “nuns” e do “numas”) no blog “obraemprogresso” e ter recebido resposta sóbria de Heloisa Chaves, a mais atenta às questões da língua entre os comentadores, confessando que de fato sempre dizia “num” mas escrevia “em um”. Aprendera na escola. É muito mais jovem do que eu e isso me fez observar que talvez tenha havido um acordo, mesmo informal, desautorizando a mencionada contração na linguagem escrita. Quando eu estudei, a contração da preposição “em” com o artigo “um” (e suas variações de gênero e número) era ensinada como a que se dá entre a mesma preposição e o artigo definido: ninguém diz ou escreve “em a” ou “em o”. Por alguma razão, deixou-se de encorajar os estudantes a fazerem o mesmo com artigos indefinidos, ao menos por escrito, já que não costumo ouvir nada além de “nuns” e “numas” nas falas de todos os meus eventuais interlocutores. Imagino o Alexandre Frota contando que, “em uma noite”, botou pra “fuder”. Pode ser que, influenciados pela escrita, alguns já falem assim e eu, com o ouvido viciado, não ouça» («Sem num nem numa», O Globo, 19.01.2014).


  [Texto 3899]