Irreconhecível
Quem disse que isto não podia piorar? Pode, pois. Ortega y Gasset cita o conde de Yebes: «Mirar según se va marchando; mirar mientras se merienda o se enciende un cigarro; hacia arriba, hacia abajo, hacia el terreno que hemos recorrido, a las cresterías, a las poyatas y canales, con los prismáticos y a simple vista, y tener siempre presente que el macho que nos has encontrado en ocho horas de ruda labor se te puede presentar a cien metros si sabes mirar, cuando a la caída de la tarde, hecho unos zorros y maldiciendo de tu afición, te estás descalzando y cuidando tus doloridos pies en la puerta del refugio o de la tienda.» Tudo, parece-me, claríssimo. Apenas assinalo aquele segmento porque sei que é nas coisas concretas que os tradutores se costumam estatelar. Agora vejam a tradução portuguesa: «Olhar conforme se vai andando; olhar nos momentos de descanso; olhar enquanto se merenda ou se acende um cigarro; para cima, para baixo, para o terreno que já percorremos, para os enfeites dos pontos altos dos edifícios, para as mísulas e telhados, com os binóculos e a olho nu, e ter sempre presente que o macho que não encontraste em oito horas de rude labor se te pode apresentar a cem metros se sabes olhar, quando, ao cair da tarde, estás desfeito de cansaço e a maldizer o teu entusiasmo, a descalçar-te a tratar dos pés doridos à porta do teu refúgio ou da tenda» (Sobre a Caça e os Touros, José Ortega y Gasset. Tradução de José Bento. Lisboa: Edições Cotovia, 2004, 2.ª ed., p. 99).
O contexto é pouco mais alargado do que este que aqui transcrevo: o conde de Yebes começa por dizer que a visão é o sentido mais necessário ao caçador. O caçador deve «mirar, mirar y remirar». Claríssimo, repito.
José Bento de certeza que nunca deixou de dizer de si para si que canales não eram «telhados», mas teve de enjorcar a tradução neste ponto, já que não atinou com o significado de crestería. A ideia do original ficou, como se pode comprovar, desvirtuada, irreconhecível. É assim: «para as cristas [dos montes, das serras], para os muros [de pedra seca], para os vales». Procurando, encontraríamos melhor termo para estes muros. Na ilha da Madeira, aos socalcos que sobem as encostas do mar até à serra dá o povo o nome de poios, que têm também muros de pedra seca. Como nas ilhas Baleares têm o nome de marges. Reparem na semelhança: poyatas, poios.
O caçador de Yebes está no campo, na serra; o caçador de José Bento está no meio de uma povoação.
[Texto 4171]