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Linguagista

«Romulares/Remolares»

Descorrija-se

 

      Afonso da Maia «bem depressa esqueceu o seu ódio aos sorumbáticos padres da Congregação, as horas ardentes passadas no café dos Romulares a recitar Mirabeau, e a República que quisera fundar, clássica e voltariana [sic], com um triunvirato de Cipiões e festas ao Ente Supremo». Isto se lê na edição de 1888. Ora, há por aí edições em que se lê que é o «café dos Remolares». Com que legitimidade se faz uma alteração desta natureza? Mesmo que o passo de Eça signifique que é um café situado na Praça dos Romulares, actual Cais do Sodré, e muitos tenham como certo que Remolares é que está certo, porque remolar* era o obreiro que fazia ou consertava remos, o que pode ser mera especulação, nada justifica a alteração.

 

[Texto 6045]

 

      * Provavelmente do latim vulgar remularis, derivado de remŭlos, diminutivo de remus, «remo», leio num dicionário de catalão.

 

Sobre «panóptico»

Estou que não

 

      Depois da fuga de El Chapo, está dado o mote. Sabem o que significa panóptico? Não estão desacompanhados: o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora não o regista. Não precisam de saber já para me responderem: digam-me cá, acham que, segundo o Acordo Ortográfico de 1990, se escreverá «pan-ótico»? É quase consensual que sim, mas não percebo porquê. De facto, no AO90 (n.º 1, c), Base XVI), estatui-se que se usa o hífen nas «formações com os prefixos circum- e pan-, quando o segundo elemento começa por vogal, m ou n [além de h, caso já considerado atrás na alínea a)]: circum-escolar, circum-murado, circum-navegação; pan-africano, pan-mágico, pan-negritude». Algo me diz, no entanto, que não deve ser assim com um termo que já recebemos do inglês. Mas gostava de ouvir mais opiniões. Se o Vocabulário Ortográfico Português, do ILTEC, fosse fiável, inteiramente credível, bem podia ufanar-me de estarmos de acordo, mas não vale a pena.

      «Terceira lição: a ZE é hoje um grande pan-ótico, onde os prisioneiros e os carcereiros se vigiam mutuamente. Quem fica, perde a alma. Quem sai, arrisca o pescoço. O protesto democrático de um povo empobrecido partiu-se contra o muro hegemónico ordoliberal, como os sabres da cavalaria polaca contra o aço dos blindados em 1939» («Três lições de Xerxes em Atenas», Viriato Soromenho-Marques, Diário de Notícias, 13.07.2015, p. 7). «Ordoliberal» também não se vê muito...

 

[Texto 6044]

O maior escadote do mundo

Ninguém viu que não podia ser

 

      «El Chapo já tinha escapado por um buraco com 50 centímetros de largura e 10 metros de profundidade ligado a um túnel, com 1,5 quilómetros de cumprimento [sic], por um escadote. O túnel termina num prédio em construção fora da área prisional, informaram as autoridades mexicanas» («As fugas de El Chapo: no meio de roupa suja e por túnel no duche», Ana Bela Ferreira, Diário de Notícias, 13.07.2015, p. 2).

   Por um escadote... Que ângulo teria um escadote com tal altura? Francamente! A imprensa mexicana fala em escalera, não em escalera de tijera. E mais: o buraco na cela tem 50 por 50 centímetros e metro e meio de profundidade. Este buraco é que desemboca numa conduta vertical de 10 metros de profundidade, e foi aqui que se encontrou uma escada, que, por sua vez, comunica com um túnel com cerca de 1500 metros. Um pouco diferente, não é?

 

[Texto 6043]

Eça descorrigido

Não pode ser

 

      Sim, dignatário por dignitário merece nota, mas não emenda. Não concordo — e quem pode concordar? — que se corrija Eça de Queiroz. Não por ser Eça, mas por o autor já não estar entre nós para ratificar a emenda. Emendem-se, repito, os vivos. A obra tem outros erros (e gralhas, mas estas, involuntárias, não contam como avaria grave). Um exemplo. Aparece por lá, e muitas vezes, um gatarrão de nome Bonifácio. O autor escreveu que era um «pesado e enorme angorá, branco com malhas louras». Ora, só se diz bem entre nós angora, grave. Vamos agora corrigir, querem ver? Este, a meu ver, nem merece nota de rodapé.

      Quem fixar o texto também tem de repor a variação original entre os ditongos decrescentes ou e oi. Se Eça escreveu «por uma dourada tarde», porquê alterar, como outros fizeram, para «doirada»? Se Eça escreveu «senhora loura», porquê alterar, como outros fizeram, para «loira»? Vejamos: se esta variação ainda é plenamente aceite (com poucas excepções, como cousa, noute...*) pelos falantes do português actual, qualquer alteração ao que o autor escreveu é puro arbítrio. Tenho outras dúvidas, porventura mais rebuscadas e especiosas. Por exemplo: se Eça escreveu Guisot, temos de alterar; mas será igualmente curial alterar para Helvécio o Helvetius que ele escreveu?

 

[Texto 6042]

 

 

 

      * E ainda nestas tenho dúvidas. Se Eça escreveu «seria absurdo querer reprimir tais cousas», devemos em consciência alterar para «coisas»? Como podem, assim, os leitores perceber a diferença entre como se escrevia no século XIX e como se escreve na actualidade?