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Linguagista

«Dever de/dever»

Mas não corrijam os clássicos

 

      «Primeiro, porque, se me ordenasse, entendia que devia de ser padre a valer, e julgava-me incapaz de praticar as inibições que a função impõe» (Um Escritor Confessa-se, Aquilino Ribeiro. Lisboa: Livraria Bertrand, 1974, p. 33).

      A verdade é que o verbo «dever» admite variação de complemento, pois tanto se usa, ligado à forma infinitiva, com a preposição «de», como sem a preposição. O que acontece é que, actualmente, a ausência da preposição, como notou José Neves Henriques, é mais corrente, e até sentida como mais correcta pelos falantes. Não se pode é afirmar, ignorando isto, como fazem por aí certas professoras (pobres alunos...), que correcto é apenas sem a preposição. E está sempre certo? Parece que não: a construção com preposição (dever de + infinitivo) indica probabilidade, suposição. Como interpreto a frase de Aquilino, não há ali probabilidade ou suposição, antes certeza, obrigação, precisão de um resultado (dever + infinitivo); logo, o escritor devia ter redigido assim a frase: «Primeiro, porque, se me ordenasse, entendia que devia ser padre a valer, e julgava-me incapaz de praticar as inibições que a função impõe.» Se alguém discordar, mais arraigada fica a convicção de que se deve prescindir — em todos os casos — da preposição. É o que recomendo. Contudo, quem anda a reeditar clássicos, o que é sempre meritório e útil, não deve pôr os textos nas mãos de quem não sabe o que está a fazer e, num caso como este, aspa as preposições.

 

[Texto 6216]

Uso do travessão

Porque não?

 

      Escrevi em tempos no Assim Mesmo que talvez já não pudéssemos ignorar por muito mais tempo o uso expressivo do travessão que é feito na literatura em língua inglesa. Temos de retomar a questão. Atente-se no seguinte exemplo: 

 

      «“A week or two?” he shouted in disbelief. “Mother, wait, what do you expect me to—“

      The line went dead. Seething, he dialed her number again, and got a busy signal» (The Dream Life of Sukhanov, Olga Grushin. Londres: Penguin Books, 2005, p. 83).

   Na verdade, o travessão não tem aqui o mesmo valor das reticências. Aqui, o travessão representa quase sempre uma interrupção brusca e involuntária da fala da personagem, seja por uma fala de outra personagem, seja por um qualquer fenómeno natural ou acção exterior. O que é muito diferente de, por exemplo, isto:


      «“So peaceful here,” he said with an apologetic half-smile. “I just wanted… Listen for a moment.”»


     O eventual problema, reflecti então, é o de o corte assim assinalado coincidir com a passagem do discurso directo para o indirecto, entre nós ainda generalizadamente marcado, e bem, pelo travessão, desvirtuando-se então a intenção do autor. Porque nunca iríamos duplicar o travessão, claro. Isto escrevi então. Agora encontrei um exemplo menos recente e, melhor ainda, não numa tradução, mas em obra original portuguesa.

      «Assim, encontravam-se sempre com prazer, alternando as visitas ao quarto-casa de uma e outra. O David foi-me precioso em Londres. Imaginem —

      — Desculpe, Miguel. Ainda agora você disse uma coisa a respeito da paisagem, nas descrições dos romances, que já estava tudo dito, e não sei quê» (Viver com os Outros, Isabel da Nóbrega. Lisboa: Prelo, 1972, pp. 73-74).

 

[Texto 6215]