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Linguagista

«Personæ (non) gratæ»

Conjuga e declina,

saberás a língua latina

 

      «Ainda se não viessem representar o respectivo seminário, delegados e implicitamente personas gratas do seu prelado, podia conceber-se que lhes interessasse cooperar connosco no estudo duma solução através duma hipótese muito pouco provável: e era que acalentassem o propósito de despir a roupeta ou tivessem em mira acautelar-se para tal possibilidade» (Um Escritor Confessa-se, Aquilino Ribeiro. Lisboa: Livraria Bertrand, 1974, p. 159). Para um seminarista, não está mal — está péssimo. Já uma vez tratei da questão, esclarecendo que não basta acrescentar ss. O plural da expressão é personæ non gratæ. Quem sabe se os jornalistas, aventava então, não pensam que a expressão é espanhola... No Seminário de Beja, barra em latim não era Aquilino, mas o colega Pinho Brandão. Ter-se-á tornado padre? (Quase a propósito: comprei recentemente num alfarrabista uma obra de Agostinho de Campos, e no frontispício está a assinatura de posse, numa bela caligrafia, do P.e Roque do Nascimento. Alguém o conheceu? Será o cónego da Sé Catedral do Funchal, Domingos Roque do Nascimento? Como seria bom conhecermos por quantas mãos os livros já passaram quando chegam às nossas.)

    «Foi assim que se tornou um ás nos latins, sendo certo que o conhecimento desta língua depende do poder de retentiva, como sugere o ditado: conjuga e declina, saberás a língua latina» (idem, ibidem, p. 81).

 

[Texto 6225]

Leiam em voz alta

E logo vêem (sinestésico)

 

      «Por pelo menos três vezes o líder socialista diz a Passos Coelho que este tem “muitas saudades” de José Sócrates» («António Costa joga troika, BES e até Sócrates contra Passos Coelho», João Pedro Henriques e Paula Sá, Diário de Notícias, 10.09.2015, p. 2).

      Escrever, já o vimos aqui várias vezes, implica sempre reescrever e cortar. Alterar. «Por pelo menos três vezes»? Puro pêlo... Umas palavras mágicas — abracadabra, sim-salabim-bim-bim, hocus pocus —, e já está: «Pelo menos por três vezes o líder socialista diz a Passos Coelho que este tem “muitas saudades” de José Sócrates.» Mas é preciso ter-se ouvido. E, com um artigo escrito a duas mãos, quatro são os tímpanos, tantos como os de um grande efectivo orquestral. Não desafinem.

 

[Texto 6224]

Mas estão aportuguesadas!

Um retrocesso

 

      «A outra novidade de relevo é a câmara iSight (traseira) que passa a ter 12 megapixels, um sensor mais eficiente e 50% mais pixels que a anterior. Passa também a gravar vídeo de ultrarresolução 4K e a câmara frontal ganha um flash para selfies, Retina Flash, passando a 5 megapixels» («Apple lança dois novos iPhones, iPad Pro e reinventa televisão», Ana Rita Guerra, Diário de Notícias, 10.09.2015, p. 19).

      Os artigos sobre tecnologia já são, por natureza, repletos de termos em itálico — pelo menos no Diário de Notícias, que respeita, e relativamente bem, esta parte do código da escrita —, mas, quando os jornalistas ignoram que alguns vocábulos já foram aportuguesados ou traduzidos, tudo piora. Ana Rita Guerra, é píxel e megapíxel. Está nos dicionários, caramba. Neste artigo, e alguns com várias ocorrências, temos: link, online, smartphones, peek, pop, marketing, performance, megapixels, pixels, flash, selfies, wifi, design, set-top-box, updates, apps. Ficamos com a cabeça inclinada, como se fôssemos amblíopes.

 

[Texto 6223]

Escrever e não rever

Pães élficos e o PS

 

   Ficou definitivamente assente: «Com apenas algumas lembas oferecidas pelos elfos, Frodo não conseguiria viajar de Rivendell até ao vulcão Mordor para destruir o anel. Quem o afirma são os cientistas Skye Rosetti e Krisho Manoharan. Não se sabe se são fãs de O Senhor dos Anéis, mas os investigadores da Universidade de Leicester quiseram estudar a quantidade de calorias necessárias para a viagem, tendo descoberto que Frodo precisaria de pelo menos 75 pães élficos para chegar vivo ao destino» («Frodo precisava de 75 “pães élficos” para chegar a Mordor», Joana Capucho, Diário de Notícias, 10.09.2015, p. 19).

     Vem tudo no Journal of Interdisciplinary Science Topics. É assim que a ciência pula e avança. «Segundo os investigadores, cada lemba, alimento fictício inventado pelo Tolkien, teria cerca de 2638,5 calorias.» O Camões, o Costa, o Passos Coelho... e o Tolkien. É assim que se fala e escreve agora. Até se vai mesmo impondo nas editoras. Mas, mesmo que sem querer, umas linhas atrás a jornalista acertou, pois escreveu que «para chegar ao referido valor, a equipa baseou-se na quantidade de calorias necessárias para cada um dos elementos criados por J.R.R. Tolkien». Adepta da sacrossanta integridade dos títulos de obras, a jornalista escreve assim: «No “O Senhor dos Anéis”, estes pães são feitos pelos elfos com cereais e luz solar.» Do livro de estilo do jornal também já deve constar, e entretanto foi bem assimilado por muitos dos jornalistas, que as cores compostas perderam a ligação por hífen: «Muito nutritivos, são castanhos claros por fora e creme por dentro.» Neste ponto, desligaram-se-lhes algumas sinapses, mas eu explico mais uma vez: com o Acordo Ortográfico de 1990, as cores compostas continuam — atenção, continuam — a grafar-se com hífen. Logo, castanho-claro, verde-escuro, azul-bebé, etc. É bom que o registem, pois o acordo veio para ficar. O Dr. António Costa, que ontem à noite ganhou as eleições, já prometera no programa eleitoral do PS «a implementação das ações necessárias à harmonização ortográfica da língua portuguesa e da terminologia técnica e científica, nos termos dos acordos estabelecidos».

 

[Texto 6222]