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Linguagista

Ou os nossos limites?

«Voltámos aonde nunca saímos.»

 

      A frase está a ser comentada em vários sítios. Desde manhã, já cinco leitores me pediram que dissesse alguma coisa (nenhum era jornalista, ou ter-me-iam pedido para «reagir»). É de um artigo de Ricardo Costa no Expresso. Ali no eixo, a frase desarticula-se. «Voltámos aonde» — está certo; «aonde nunca saímos» — está errado. Nada: não podemos usar ali os advérbios «onde», «donde» ou «aonde».

      Será mesmo um anacoluto, como Fernando Venâncio aventa aqui? Há ali, disso ninguém tem dúvidas, quebra da estrutura sintáctica, mas não apresenta, como ocorre nos exemplos mais conhecidos, descoincidência de sujeitos: «Santo António [...] abriu-lhe Deus um dia os olhos para que visse neste mundo o que nós não vemos» (P.e António Vieira). Num estádio inicial do português, os anacolutos abundavam na escrita, e, portanto, vistos como algo normal. Só mais tarde os puristas começaram a apontar o dedo a estas construções e a condená-las defeituosas. Sim, podem ser os limites da gramática, ou, pelo menos, os limites a uma economia que nos convinha. Teremos de nos contentar com «voltámos ao lugar de onde nunca saímos». Local, sítio, ponto... No caso, ao buraco.

 

[Texto 6258]

«Ter matado a mulher»

Lésbica ou assassina?

 

      «Tédio foi a palavra que despertou a atenção do fotógrafo João Francisco Vilhena. Leu-a nos jornais, há cerca de oito anos, como sendo a desculpa dada por um homem para ter morto a mulher» («De que não falamos quando falamos de amor», Ágata Xavier, «GPS»/Sábado, 17-23.9.2015, p. 40).

      Lembramo-nos logo do Clube das Encalhadas, não é? «Preferias ser lésbica ou ter morto alguém? E diz-se morto ou matado?» (O Clube das Encalhadas, Catarina Fonseca. Lisboa: Editorial Caminho, 2006, p. 8). A interlocutora dá a resposta que se ouve frequentemente: «— Acho que é matado, mas soa tão mal.» É quase sempre assim: tudo o que é correcto, por ser tão pouco usado, vai soando mal. Pudera.

      Como tantos outros (chamados verbos abundantes), o verbo «matar» tem dois particípios, um regular (matado), que é o seu particípio natural e próprio, como disse Mário Barreto, e um irregular (morto), que toma do verbo «morrer». Com os verbos «ser» e «estar», devemos empregar o particípio irregular; o particípio regular, por seu lado, é utilizado nos tempos compostos com os verbos auxiliares «ter» e «haver». Logo, a frase ficaria assim: «Leu-a nos jornais, há cerca de oito anos, como a desculpa dada por um homem para ter matado a mulher.» Sim, a frase teve de levar ali uma tesourada numa excrescência: «como a desculpa» e não «como sendo a desculpa».

 

[Texto 6257]