O ponto fraco
«Saídos da sala de jantar davam metade de um abraço porque entretanto o criado começara a vestir-lhe o sobretudo e tinha o outro braço preso na manga; vestido o sobretudo, o criado pegava no cabaz de romãs que a Escolástica mandava para a Senhora do amigo do Avô e começava a dirigi-lo, a uma certa distância e com todo o cuidado, para a porta da saída; é nesta altura que ele traz finalmente à baila o motivo da visita, uns cavalos baios que tem debaixo de olho e sobre os quais precisa da opinião do Avô; mas, estando de partida, com uma luva calçada e o chapéu na cabeça, avança que hão-de falar numa próxima oportunidade; o Avô adverte que não percebe nada de cavalos, ao que o amigo lhe responde que é mesmo por isso que precisa da opinião dele, que as dos peritos já ele ouviu; o Avô lembra-se então de que anda há uns seis meses para lhe mostrar umas gravuras com cavalos recebidas de um coleccionador; leva-o para o escritório, ele despe o sobretudo, o criado fica de pé atrás dele com o sobretudo nos braços e aguenta o cabaz das romãs até concluir, por intuição e experiência, que a conversa pode demorar. Isto de saber de antemão quanto tempo vai durar uma conversa é coisa para um capítulo inteiro» (Cláudio e Constantino, Luísa Costa Gomes. Revisão de Clara Boléo. Alfragide: Publicações Dom Quixote, 2014, p. 11).
Para que cito uma frase tão longa, quando a podia transcrever truncada? Pois para demonstrar como a revisora se perdeu ali algures — aliás, perdeu-se duas vezes, pelo menos, prova e contraprova. (Num livro de António Lobo Antunes, seriam sete vezes.) E, no entanto, a frase, ou não tivesse sido escrita por Luísa Costa Gomes, é perfeita — excepto na falta da tal vírgula. Graças ao ponto-e-vírgula, podia prolongar-se até ao infinito. Usa-se a vírgula para separar orações gerundiais e participiais: «Saídos da sala de jantar, davam metade de um abraço, etc.» Simples, agora. Está tudo — com outros exemplos, porque não faltam — no meu Manual de Revisão, em breve no prelo.
[Texto 6261]