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Linguagista

Assim se fala na televisão

O mundo como sempre o conhecemos

 

    Enquanto estou aqui a pensar se um duplo «que» nos Lusíadas é repetição anacolútica, se repetição pleonástica, no Jornal da Noite, na SIC, Rodrigo Guedes de Carvalho vai dizendo que «Henrique Neto assistiu ao lançamento de uma biografia sobre a sua vida». Por aí já não vamos ter nenhuma surpresa. Agora só falta saber se é sobre a vida passada ou sobre a vida futura.

 

[Texto 6514]

Tradução: «fullonica»

Da ars fullonica ao jornalismo

 

      «Na Fullonica di Stephanus (que poderíamos traduzir por Lavandaria Stefano) há até uma área para armazenar a urina que era recolhida nas casas de banho públicas e usada para tirar nódoas difíceis (depois de fermentada, produz amoníaco, substância que consta ainda hoje de vários produtos de limpeza)» («A lavandaria de Pompeia já reabriu mas só para visitas», Lucinda Canelas, Público, 29.12.2015, p. 30).

     Quando se trata de traduções, tenho sempre, e cada vez mais, dúvidas, muitas dúvidas. São publicados em França os melhores dicionários de latim e o que vejo neles é que fullonica é traduzido por fouloir, pisão, calandra. Como na Fullonica Stephani se encontraram «vestígios da zona onde se passava a ferro com uma prensa», dir-se-ia que aquela calandra servia para este fim. Mas não me parece, pois os dicionários de latim-inglês a fullonica fazem corresponder fullery, oficina de pisoagem. Pisoar é bater tecido, pano, com pisão para o encorpar e dar resistência. Logo, a Fullonica Stephani pode traduzir-se por Pisoaria do Estêvão. E pisoaria é outra palavra que os dicionários nos roubaram. E tissoaria. Subsistem em topónimos. O que acontece é que, Lucinda Canelas, meus senhores e minhas senhoras, as fullonicae proporcionavam dois serviços: acabamento de tecidos novos e limpeza de tecidos, roupa.

 

[Texto 6513] 

Léxico: «trombólise»

Em próximas edições

 

      «Em relação às seis horas de espera de que se queixaram os familiares do idoso, Pedro Nunes considerou que “até nem são muitas”, uma vez que “o doente foi avaliado, sujeito a análises, a TAC [tomografia axial computorizada] e terá feito, inclusivamente, terapêutica, a chamada “trombólise” [para dissolver o coágulo de sangue]”» («Ministério avalia carências e reorganiza resposta em Lisboa», Alexandra Campos, Público, 29.12.2015, p. 11).

      E se no Brasil não sabem do que se trata? Consultei dois dicionários — o Grande Dicionário Sacconi (2010) e o Dicionário Houaiss (2003) — e nenhum deles acolhe o vocábulo «trombólise». José Pedro Machado, em 1981, registou-o.

 

[Texto 6512]

Ortografia: «gambozinos»

Às vezes corre mal

 

      «E, assim, a esquerda neo-histérica continua toda entretida com a sua caça ao gambuzino neoliberal, ignorando o verdadeiro elefante no meio da sala: o capitalismo 
de compadrio que PS, PSD e CDS alimentam há mais de 40 anos. Alfredo Barroso parece não saber o que isso é. No próximo texto, vou ajudá-lo» («Alfredo Barroso e o gambuzino neoliberal», João Miguel Tavares, Público, 29.12.2015, p. 48).

      Nem sempre corre bem escrever e não consultar um dicionário, não é, João Miguel Tavares?

 

 

[Texto 6511]

Léxico: «estroncamento»

Três vezes mento

 

      «O suspeito, desde o ano de 2005, de forma reiterada e com elevados prejuízos para as vítimas, tem realizado furtos qualificados, através de escalamento, arrombamento e estroncamento de portas e janelas, subtraindo todo o tipo de artigos de valor, nomeadamente, objetos em ouro, prata, coleções de moedas, livros ou dinheiro”, explica PSP, em comunicado» («PSP prende “homem-aranha” por dezenas de assaltos», Alexandre Panda, Jornal de Notícias, 25.12.2015, p. 30).

      Já uma vez aqui tinha trazido um «estroncamento», sempre raro. Tal como desta vez, usado pela Polícia. Estroncar é partir, quebrar, desmanchar. O pior é quando nos comunicados da Polícia se escrevem brutezas inconcebíveis como «altercações de ordem pública» e os jornalistas as reproduzem, como vimos aqui.

 

[Texto 6510]

«Antes» e «dantes»

Antes de mais

 

      «A pouco e pouco tornou a viver bem, mesmo sem a fortuna de dantes, pilhada no Brasil por antigos empregados do meu bisavô» («A Monarquia», António Lobo Antunes, Visão, 23.12.2015). O leitor R. A. mandou-me esta frase com uma pergunta: «Quer comentar?» Perguntei então se o que estava em causa era a repetição do som. «Não ficava melhor “a fortuna de antes”?» Antes e dantes são sinónimos, é verdade, mas o primeiro é advérbio não apenas de tempo. Se quero dar a ideia de outrora, antigamente, é «dantes» que tendo a usar, embora também pudesse usar «antes». Como quase de certeza não quereria aquele encontro de sons (de... dan), evitava — no caso específico desta frase — ambos e optava por outrora: «A pouco e pouco tornou a viver bem, mesmo sem a fortuna de outrora, pilhada no Brasil por antigos empregados do meu bisavô.» Este «de dantes» é, curiosamente, muito encontradiço nas obras de António Lobo Antunes.

      Há, contudo, matizes que julgo não estarem nos dicionários. Certa vez, o Bom Português foi para a rua perguntar se se devia dizer «antes usava bigode» ou «dantes usava bigode», e concluiu que eram sinónimos. Imaginemos que hoje me encontro pela segunda vez — e a primeira foi na semana passada — com um homem que não conhecia. Desta vez, aparece sem bigode. Para me assegurar da identidade dele, pergunto «antes não usava bigode?», e não «dantes não usava bigode?».

 

[Texto 6509]