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Linguagista

Também o verbo «granjear» aterrou mal

Coisa de defuntos

 

    Eu granjeio, tu granjeias — ele faz o que pode. Luís Manuel de Araújo, egiptólogo, em entrevista: «O Egipto tem a atenção das pessoas, porque elas sentem intuitivamente que as nossas origens não estão na Grécia. Antes do passado greco-romano já havia três mil anos de história. Mais do que a Grécia, Roma, Israel ou a China, o Egipto é um tema que granja simpatias» («Estamos mais próximos dos egípcios do que imaginamos», Alexandra Prado Coelho, Público, 17.04.2016, p. 25). O entrevistado diz coisas tão interessantes, que nem acreditamos no erro. (Já sei que todos erramos, mas mais uns do que outros.) Logo, achamos mais provável que seja erro da jornalista. E, no entanto, o mais certo é ser erro dos dois. E isso é possível? Sim: o egiptólogo errou na forma verbal, e a jornalista errou porque não a corrigiu. Vá, cinquenta vezes: granjeia.

   Isto trouxe-me à memória uma das crónicas de Carlos Rafael Guimaraes (1926-1987), reunidas na obra Morcego em Paris (Porto Alegre: Libretos, 2007), em que falava do verbo granjear nestes termos: «Por exemplo: nas velhas necrologias se escrevia que o defunto “granjeou” muitas amizades, mercê de suas altas qualidades, etc... Graças a isso, o leitor esqueceu do sentido concreto do verbo “granjear” (cultivar a terra) e passou a considerá-la como certa misteriosa ação praticada pelos defuntos» (p. 66).

 

[Texto 6754]

Uma aterragem desastrada

Ainda se despenha

 

      «O voo dura cerca de uma hora e quando já começamos a preparar-nos psicologicamente para a aterragem e a tentar recordar as instruções, João Rodrigues faz um touch down — pousa e volta a levantar — só para nos deixar mais descansados. E, de facto, mal sentimos o contacto com o chão» («Ser padrinho de uma cerejeira é voltar sempre ao Fundão», Alexandra Prado Coelho, Público, 17.04.2016, p. 38).

      Mas o touch down para que serve a não ser para atrapalhar a leitura? Parece que está explicado, «pousa e volta a levantar», mas touchdown (assim devia ter escrito, porque é o substantivo, noun form) é apenas «aterragem». Não percebo, por muito que me esforce.

 

[Texto 6753]

Léxico: «talibé»

Os ínvios caminhos da língua

 

      «A reportagem Talibés, Escravos dos Tempos Modernos valeu ao fotógrafo Mário Cruz o seu segundo Grande Prémio em dois meses. Depois de vencer na Categoria Assuntos Contemporâneos do World Press Photo, o trabalho que testemunha o tráfico e a exploração de crianças e adolescentes que vivem em escolas corânicas do Senegal recebeu ontem o Estação Imagem, o maior prémio do fotojornalismo português» («Estação Imagem: mais um prémio para os talibés de Mário Cruz», Abel Coentrão, Mário Lopes e Lucinda Canelas, Público, 17.04.2016, p. 43).

      Em jornais, é a primeira vez que a leio. Talibé é o aluno de escola alcorânica ou o discípulo de um marabu. Usa-se, segundo o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, na Guiné-Bissau. Neste dicionário lê-se que a etimologia é o francês talibet, mas não é assim — em francês também é talibé. Na origem está o árabe literário talib, e o plural é talibé. Ao chegar ao francês, tomou-se o plural pelo singular e juntou-se um s para o pluralizar, o que é correcto e também sucedeu — embora muitos jornalistas não compreendam uma coisa tão básica — com talibã, que tem o mesmo étimo.

 

[Texto 6752]