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Linguagista

Sobre «tudólogo»

Há gente assim

 

      «A propósito de Rui Ramos, João Miguel Tavares quis há dias (PÚBLICO, 3.5.2016) agredir Fernando Rosas usando-me a mim como pretexto. De tanto não ter lido o que Ramos escreveu, e menos ainda os meus artigos que em 2012 deram origem a um debate em que ele não participou, Tavares retoma a velha ladainha de que eu teria “deturpa[do] de forma escabrosa e escandalosa vários excertos da obra” de Ramos (a contenção nos adjetivos é um dos seus fortes) numa argumentação “estúpida” (onde é que eu já li isto?) e “delirante”. Reconhecido tudólogo, que de tudo e de nada escreve com a mesma ligeireza, Tavares julgava que “o assunto” estava enterrado. E, no que diz respeito à relevância e à competência das suas opiniões, está mesmo. Enterrado» («“Dinheiros públicos, vícios privados”», Manuel Loff, Público, 14.05.2016, p. 53).

      De vez em quando vê-se o vocábulo tudólogo, que, ao que parece, vem do italiano. É termo jocoso ou irónico, o que se percebe até pela sua formação, um desafio, quando não um ultraje, à semântica. Assim, há, de facto, tudólogos — não me interessa agora se João Miguel Tavares é um deles, não o conheço —, isto é, indivíduos que opinam publicamente sobre tudo. No fundo, mestres de tudo, oficiais de nada. Estranhamente — há outros menos legítimos que estão lá —, ainda não foi acolhido nos dicionários. Não menos estranhamente, Pedro Mateus, no Ciberdúvidas, em 2011 (quando ainda escreviam coisas ridículas como «ir{#ó|ô}nico» e «fa{#c|}to» e outras que tais, que ainda hoje me causam engulhos só de as lembrar), era de opinião que «a sua utilização é, no mínimo, duvidosa, ou até inviável» («O neologismo tudólogo», 31.03.2011, aqui). De utilização inviável? A realidade desmente-o.

 

[Texto 6809]

E agora a «humint»

A troco de nada

 

      «O pretexto é o terrorismo, mas é mau pretexto, porque a maioria dos crimes de terrorismo recentes são particularmente desleixados em matéria clandestina, usam métodos muito pouco sofisticados, e, se não fossem erros clamorosos dos serviços de informação e das polícias e a substituição de técnicas de intelligence, como a chamada humint, pela aparente facilidade da espionagem electrónica generalizada, teriam sido detectados» («Ascensão e queda da privacidade», José Pacheco Pereira, Público, 14.05.2016, p. 50).

      Quem diz intelligence também diz humint, ora pois claro. Ainda que «inteligência» signifique exactamente o mesmo, nunca podia vingar. Humint é uma simples amálgama, de human intelligence. Quanto à substância, tem Pacheco Pereira razão: a privacidade nos modernos Estados democráticos praticamente deixou de existir, e tudo por culpa dos cidadãos. Agora, nos supermercados, é raro ver-se alguém que não queira, ao comprar um simples pacote de arroz, factura com NIB. (Também é raro ver-se um empregado sem tatuagens nos dedos ou nos braços, mas isso é outra conversa.) E, porque tantos se entregam assim, todos pagamos. Tristes tempos.

 

[Texto 6808]

Barriga de aluguer

Isso é para a lei

 

      «Filomena Gonçalves, vice-presidente da Associação Portuguesa de Fertilidade [APF], explica porque é que deve dizer-se “maternidade de substituição” ou “gestação de substituição” em vez de “barrigas de aluguer”: “O conceito de barrigas de aluguer é muito hollywoodesco, foi importado porque em muitos países é feito um contrato de aluguer do útero e existe uma compensação monetária”» («Por que não se deve dizer “barrigas de aluguer”?», Bárbara Baldaia, TSF, 13.05.2016).

      E isso, ser hollywoodesco, é razão para se lhe chamar de outra forma? E contrato parece-me que sempre houve, com compensação monetária ou sem compensação monetária. Não, não, a designação jurídica procurará sempre ser neutra, a designação popular, ainda que copiada, procura a singeleza e a expressividade.

 

[Texto 6807]

Ortografia: «a-histórico»

Disortograficamente

 

      «Se isolarmos a decisão de Truman, se a colocarmos num vácuo ahistórico onde só existe bem e mal em absoluto, a bomba só pode ser vista como a representação do inferno» («Hiroshima: Obama não tem que pedir perdão», Henrique Raposo, Expresso Diário, 13.05.2016).

      Já nos tinham chegado aqui ecos desta opção errada de Henrique Raposo. Se quer mesmo escrever sem hífen, então tem à disposição a variante anistórico. Como escreve — «ahistórico» — é um erro crassíssimo, mesmo nessa espécie de ortografia em que se exprime. Estranhamente, parece que ninguém lhe diz nada. Será que não o lêem?

 

[Texto 6806]

«Lero-lero», conversa fiada além-Atlântico

Ora, não precisamos

 

      «Parece que Obama vai visitar Hiroshima durante uma viagem ao Japão ainda neste mês. Será o primeiro Presidente americano a colocar os pés na cidade das sombras nucleares. Claro que surgiu logo a conversa do “pedir desculpa”, do “perdão histórico que os EUA têm de pedir ao povo japonês”, lero-lero típico da ditadura politicamente correta que controla as universidades americanas — e é mesmo uma ditadura com boicotes e proibições diárias» («Hiroshima: Obama não tem que pedir perdão», Henrique Raposo, Expresso Diário, 13.05.2016).

     Tirando outros pormenores — como «Hiroshima», «colocar os pés», «controla» —, o que me fez mais espécie foi aquele lero-lero, conversa fiada no Brasil e para nós mera entrada de alguns dicionários. Vê-se que desconhece o exame Vieira (de Joaquim Vieira, ex-provedor do jornal Público): «Será que os meus pais vão perceber o que escrevi?» «Henrique, fala cristão», recomendar-lhe-iam. Mas há mais, e vamos já ver de seguida.

 

[Texto 6805]