Bacalhau não basta
«A dicha acertó a ser viernes aquél día, y no había en toda la venta sino unas raciones de un pescado, que en Castilla llaman abadejo, y en Andalucía bacalao, y en otras partes curadillo, y en otras truchuela» (Don Quijote de la Mancha, Miguel de Cervantes, I, 2).
Traduzir estes termos quase nunca é fácil. Na nossa língua também temos, é certo, abadejo e badejo, mas o problema, mais do que a solução, pode estar precisamente aí. Primeiro, diga-se que na edição original está abadexo e que os contemporâneos de Cervantes confundiam o abadejo com o bacalao. Confusões que persistem. Provavelmente, o abadejo dos nossos vizinhos é o nosso paloco (Pollachius pollachius), e a etimologia está, de alguma maneira, ligada a abad, «abade», talvez a abadágio, ou seja, uma contribuição em espécie que se pagava aos abades. O bacalao sim, é o nosso bacalhau (Gadus morhua). Ou também se podia dever, como aventa Julio Cejador y Frauca, à forma do peixe, a lembrar uma mitra, o chapéu alto e fendido usado pelo papa e por certos prelados em algumas cerimónias. O nome curadillo não oferece nenhuma dúvida, está ligado à salga do peixe. A propósito de mitra, lembremo-nos de que em português é o nome que se dá popularmente (o que eu só recentemente aprendi com um tradutor estrangeiro) ao uropígio das aves, também em razão da semelhança. Como também se lhe dá o nome de rabadela ou rabadilha. Ora, em castelhano, mitra nesta acepção diz-se obispillo, ou rabadilla. Pena é que o Dicionário de Espanhol-Português da Porto Editora não registe estes termos, o que é menos um arrimo seguro para os tradutores.
[Texto 7552]