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Linguagista

«Corista/coralista»

Pernas e anjos

 

      Nesta viagem que o Papa Francisco fez a Milão, estavam no Estádio Meazza, em San Ciro, leio na revista O Meu Papa, «9.000 coristas presentes na celebração da missa» (p. 21). Não, mais uma vez, não está errado (excepto o ponto em 9000), são coisas minhas: não posso ler ou ouvir a palavra «corista» que não imagine logo uma fila de pernas lúbricas a dançarem o cancã. Já se ouço ou leio a palavra «coralista», são imagens celestiais que me ocorrem, até um ou outro anjinho adejando em meu redor. Há por aí mais alguém assim?

 

[Texto 7660]

Léxico: «crismando»

Mais cristã

 

      «No metro vão cerca de cinquenta crismandos, algumas catequistas e uma dezena de pais, como eu» («“Prometam-me que nunca irão praticar bullying”», Franco Oppedisano, O Meu Papa, ed. n.º 1, 31.03.2017, p. 20). No Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, só doutorandos e quejandos. Ora, crismando não é só uma forma do verbo «crismar», senhores.

 

[Texto 7659]

Léxico: «respondente»

E para os inquéritos?

 

      «Precisamente 76,8 % dos respondentes declararam esperar mais dos serviços neste domínio.» Um dia, vai ver a luz do dia um livro com esta frase. Respondente, nesta acepção, que toda a gente já leu ou ouviu, não está no Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, que apenas acolhe o sentido jurídico: «pessoa que responde aos quesitos de um libelo judicial».

 

[Texto 7658]

Léxico: «ambrosiano»

Informação relevante

 

   «Em Itália, além do mais difuso rito romano, existe o rito ambrosiano, seguido na grande diocese de Milão (e em poucas outras localidades vizinhas). Deve o nome a Santo Ambrósio. São bastantes as diferenças entre os dois ritos, algumas das quais saltam à vista» («Em Milão, a missa segue o rito ambrosiano», O Meu Papa, ed. n.º 1, 31.03.2017, p. 18).

      Aqui está tudo bem; o problema são os dicionários. O Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora diz-nos que o adjectivo ambrosiano é o «relativo a Santo Ambrósio, antigo bispo de Milão (340-397)». Não está errado, decerto, mas será quase sempre a informação menos relevante. E no Aulete: «diz-se, em liturgia, do que se refere a Santo Ambrósio: Canto ambrosiano, rito ambrosiano, missa ambrosiana. F. Ambrósio, n. pr.». Ou seja, de pouco precisa o dicionário da Porto Editora para ter, não uma melhor definição, mas a melhor definição.

 

[Texto 7657]

Ortografia: «panóptico»

Avô e neto

 

      «A construção da prisão de Sant Vittore começou em 1872 e ficou concluída sete anos depois, durante o Reino de Itália de Umberto I. O projeto foi realizado numa zona então da periferia pelo engenheiro Francesco Lucca, que seguiu o modelo do chamado “pan-ótico” (uma prisão ideal imaginada em 1791 pelo filósofo e jurista inglês Jeremy Bentham)» («A história de San Vittore, a prisão construída em estrela», O Meu Papa, ed. n.º 1, 31.03.2017, p. 15).

      Ainda nem há uma hora, passei pela Avenida Rei Humberto II de Itália, aqui em Cascais. Está bem que o neto viveu em Cascais vários anos, mas o avô não pode perder o h só porque não teve igual sorte. Já vimos que temos a tradição de traduzir o nome dos monarcas estrangeiros, senhor tradutor da revista O Meu Papa. Avô e neto são Humberto. Já «pan-ótico» revela ou falta de cuidado ou uma triste compreensão das regras do Acordo Ortográfico de 1990. Pendo para esta última hipótese, até porque neste artigo vamos encontrar duas vezes «boas vindas».

 

[Texto 7656]

Tradução: «magistrato di sorveglianza»

O espírito, não a letra

 

      «Ali estão Gloria Manzelli, diretora da estrutura [Prisão de San Vittore], a sua vice Teresa Mazzotta, o provedor Luigi Pagano, o comandante Manuele Federico, o capelão Marco Recalcati e a presidente dos juízes de vigilância Giovanna Di Rosa» («“Sinto-me em casa: obrigado pelo acolhimento”», Matteo Valsecchi, O Meu Papa, ed. n.º 1, 31.03.2017, p. 14).

      Sejamos claros: em português, «juízes de vigilância» não significa nada. Nada. E porquê? Porque não se traduzem somente palavras, traduzem-se conceitos, tem de se procurar uma correspondência entre duas realidades diferentes, que, no caso, é juiz de execução de penas. Em alternativa, mas apenas quando não existir correspondência, até se pode traduzir literalmente, no caso, «juiz de vigilância», do italiano magistrato di sorveglianza, mas impõe-se obrigatoriamente uma nota explicativa.

 

[Texto 7655]

Léxico: «chavelha»

Tudo vai desaparecendo

 

      «Diz que é o último entalhador da Serra da Estrela a fazer chavelhas e colheres de pastor, artigos em vias de extinção. António Feiteiro gostava que houvesse jovens interessados em aprender e seguir os seus passos na arte de trabalhar a madeira em talha. Deu um curso a jovens desempregados. Alguns venderam as ferramentas, nenhum aprendeu o ofício» («O último entalhador da Serra da Estrela», Liliana Carona, Rádio Renascença, 1.04.2017, 9h00).

      Chavelha ou chaveta, mas na acepção aqui usada – peça de madeira que se usa na coleira do chocalho das ovelhas para o fechar – não estão no Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora. Se nem sequer nos dicionários ficar a memória destas coisas, que nos resta? É curioso, e há mais exemplos na língua, porque tanto chavelha, que veio mais directamente do vocábulo latino clavicŭla, como chaveta, formado já no português, significam ambos «pequena chave». Aliás, do mesmo étimo temos ainda cravelha, de formação semiculta, clavija e cavilha.

 

[Texto 7654]

M, Ma, UA

É esperar

 

      «Simbolizado, entre os estudiosos das Ciências da Terra, pela sigla Ma, o milhão de anos é convencionalmente aceite como unidade de tempo. Nada menos do que dez mil séculos, onde cabe mil cento e quarenta vezes a História de Portugal, um milhão de anos é uma eternidade no horizonte temporal das nossas vidas, mas uma ínfima migalha no tempo da Terra, actualmente estimado em 4540 Ma» («O tamanho de um milhão», Galopim de Carvalho, De Rerum Natura, 29.03.2017). «Acelerador de investimento rende 22M€» (Raquel Madureira, Destak, 31.03.2017, p. 5). «Pensa-se que se localize atualmente a 500 UA do Sol. O UA é a unidade astronómica correspondente a 150 milhões de quilómetros (distância da Terra ao Sol)» («À procura do nono planeta», Maria Filomena Silva, Audácia, Maio de 2017, p. 17).

      O que não está consagrado hoje pode vir a sê-lo no futuro. Sabe-se lá. Vejam o que encontram das três no Dicionário de Siglas e Abreviaturas da Porto Editora: apenas UA («Unidade Astronómica»). Esta é, aproximadamente, a distância média entre a Terra e o Sol, 149 597 870 700 m. O M para milhão começou, talvez, nos jornais gratuitos (falta de espaço?), mas não acabou aí. O Ma, usado em geociências, em que era necessária uma escala maior, disfarça muito bem, porque parece de «milhão de anos», mas é, na verdade, de mega age. O que é pena é os jornalistas, de maneira geral, escreverem com os pés, e fica tudo pegado, números e siglas/símbolos. E claro que os directores e editores não os podem ajudar — porque também são jornalistas.

 

[Texto 7653]