Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Linguagista

Sobre «negro»

Até em trabalhos literários

 

      Cláudia Silva, «jornalista e doutora em Media Digitais; investigadora no Madeira Interactive Technologies Institute», publicou hoje um texto no Público sobre «o racismo idiomático de cada dia». Escreve a determinado ponto da tentativa de mais uma asseptização da língua: «Em espanhol, ainda se chama a um ghostwriter um “negro”, uma alusão clara ao conceito de escravo, aquele que trabalha sem ter recompensas ou méritos pelo trabalho que desempenha.» Sim, é verdade: «Persona que trabaja anónimamente para lucimiento y provecho de otro, especialmente en trabajos literarios.» Não encontramos igual acepção nos dicionários da língua portuguesa. Contudo, no Dicionário de Inglês-Português da Porto Editora, no verbete ghostwriter lê-se isto: «(texto publicado com nome de pessoa conhecida) negro, verdadeiro autor». Como está escrito, a frase parentética não se liga logicamente com o restante. O pior — erro tantas e tantas vezes repetido — é que no verbete negro do Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora não vamos encontrar tal acepção.

 

[Texto 9040]

Léxico: «recuperador-salvador»

Se não são recolhidos...

 

      «Segundo a AMN [Autoridade Marítima Nacional], “durante a baixa-mar, foram realizadas três tentativas de agarrar o parapente pelo recuperador do helicóptero da Força Aérea Portuguesa, com recurso a um gancho ligado a um cabo que se estendia para terra, numa operação de elevada complexidade, contudo, não foi possível retirá-lo do mar”» («Retomadas buscas por turistas austríacos desaparecidos no Meco», Rádio Renascença, 11.04.2018, 8h01).

       O que se costuma dizer é recuperador-salvador, mas os dicionários nada sabem disto. Pouco surpreende, pois, que os falantes acabem muitas vezes por usar termos estrangeiros.

 

[Texto 9039]

Léxico: «crescente»

Coisa pouca

 

      Qualquer miúdo indígena de 8 anos à beira do Amazonas o saberá, mas eu só hoje fiquei a saber que crescente (a crescente, feminino) é o nome que tem a inundação ou cheia de rio. No caso do Amazonas e dos seus afluentes, as crescentes ocorrem normalmente de Março a Maio. Isto e o lapidifiés de Éric Vuillard são as aquisições linguísticas de hoje.

 

[Texto 9038]

Léxico: «esquecido»

Também se esqueceram

 

      Quando passei recentemente por Figueira de Castelo Rodrigo, trouxe uma boa dose de esquecidos, e fiquei mais ou menos com a ideia de ir ver se o nome estava nos dicionários. Esqueci-me até hoje. Perante a definição no Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, fiquei lapidificado (para usar uma palavra aprendida hoje no livro A Ordem do Dia, de Éric Vuillard). Tão-só esta coisa seca, mais seca do que o próprio esquecido: «bolo caseiro». Para já, convinha delimitar a origem geográfica: ao que me parece, são típicos da Beira Baixa. Como convinha descrevê-los minimamente: são bolos secos, arredondados e achatados, com uma característica cor amarelo-esbranquiçada.

 

[Texto 9037]

Topónimo: «Tindufe»

Grande lógica...

 

      Caiu um avião militar na Argélia. «Segundo a agência Reutres [sic]», lê-se no sítio da Rádio Renascença, que actualizou a notícia às 12h10, «entre as vítimas mortais estão 26 membros da Frente Polisário, um movimento político-revolucionário argelino a favor da autonomia do território do Saara Ocidental» («Avião militar cai na Argélia. Cerca de 200 pessoas terão morrido», 11.04.2018, 9h36).

     Pode dizer-se que é um movimento político-revolucionário argelino só por ter o apoio da Argélia? Não me parece. A Argélia, tal como outros Estados, rejeita a administração do Sara Ocidental. A Frente Polisário, exilada no território argelino, representa a República Árabe Sarauí. Em Tindufe (que isto sirva também para fixar a grafia), na Argélia, vivem cerca de cem mil sarauís. Por essa lógica, não tarda e afirmam que o movimento independentista catalão é belga ou alemão.

 

[Texto 9036]

Léxico: «caixa (ou poço) da escada»

Fora dos dicionários

 

      «Ignoro quem era o primeiro do grupo[,] o que, no fundo, pouco importa, visto que os vinte e quatro tiveram de fazer exatamente o mesmo, seguir o mesmo caminho, voltar à direita, em redor da caixa de escada até, por fim, infletindo para a esquerda, onde as portas de batente estavam escancaradas, entrarem no salão» (A Ordem do Dia, Éric Vuillard. Tradução de João Carlos Alvim e revisão de Clara Joana Vitorino. Alfragide: Publicações Dom Quixote, 2018, p. 13).

      Quase: é caixa da escada ou poço da escada (cage d’escalier, no original, e well stairs em inglês), que o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora infelizmente não regista.

 

[Texto 9035]

Tradução: «imposte»

Porque são semelhantes

 

      «As portas estão ao mesmo tempo abertas e fechadas, as impostas desgastadas, arrancadas, destruídas ou pintadas de novo» (A Ordem do Dia, Éric Vuillard. Tradução de João Carlos Alvim e revisão de Clara Joana Vitorino. Alfragide: Publicações Dom Quixote, 2018, p. 14).

      No original está impostes, sim, mas não me parece que se possa traduzir por «imposta», tendo em conta o contexto. É que, se se tratasse do elemento arquitectónico, não seriam arrancadas e destruídas sem mais. («Les portes sont en même temps ouvertes et fermées, les impostes usées, arrachées, détruites ou repeintes.») O que acontece é que em francês imposte é, não apenas o elemento sobre o qual assenta um arco, a nossa imposta, mas também a parte superior de porta ou janela, independente destas, e que pode ser fixa ou móvel, a nossa bandeira. Picuinhices? Não, e dá-se até o caso de o termo «bandeira» ser muito mais conhecido.

 

[Texto 9034]