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Linguagista

Léxico: «estrangeirização»

É assim

 

      «A propósito da estrangeirização da Espanha, escreveu o seguinte: “Hoje estamos afrancesados, inglesados, alemanizados; pedaços sem alma de outras civilizações vão sendo trazidos ao nosso corpo por uma fatal aluvião de inconsciência. O facto de importarmos mais do que exportarmos é apenas a concreção comercial de um facto muito mais amplo e grave da nossa estrangeirização”» (O Pensamento Sócio-Político de Ortega y Gasset, Jesús Herrero. Lisboa: Edições Brotéria, 1980, p. 311).

      É inacreditável, mas mais depressa vai para os dicionários um termo como «gentrificação» do que este, que mesmo agora tive de usar numa tradução. (Não, precipitados — e as cadelas apressadas parem os cães cegos ­—, não estou a afirmar ou a insinuar que são sinónimos.) É assim.

 

[Texto 10 110]

Léxico: «maçariqueiro»

Não vai restando nada

 

      «E a sua já famosa canoa “Ana Paula”, a quem deve o nome?» «Ana Paula é o nome da neta do construtor naval Hugh Parry da H. Parry and Son (o Parison, na linguagem popular) e a canoa era — digamos assim — o Mercedes-Benz do conselho de administração dessa importante companhia, que tinha a sua sede na Avenida 24 de Julho e os estaleiros na outra banda» («Fernando Carvalho Rodrigues: “Conheci comunistas da margem sul que são monárquicos”», João Távora, Correio Real, Junho de 2018, p. 12).

      No blogue Restos de Colecção, há um texto com muitas imagens sobre a H. Parry and Son, e um comentador escreve que foi lá maçariqueiro. Ainda deve haver maçariqueiros em todo o mundo, mas o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora já acabou com eles.

 

 [Texto 10 109]

Léxico: «morgadio»

Mais meia linha

 

      «Desde a morte de D. Manuel II, a sucessão da Casa de Bragança continuava pois a reger-se pelo direito comum dos morgados. A lei de 1863 tinha abolido os morgados, mas ressalvou o da Casa de Bragança com a sua sucessão especial e não revogou a lei que lhes regulava a sucessão» («A fundação da “salazarquia”», José Manuel Quintas, Correio Real, Junho de 2018, p. 5).

      Diz-nos o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora sobre morgadio: «HISTÓRIA regime em que os domínios senhoriais das famílias nobres eram inalienáveis e indivisíveis, transmitindo-se nas mesmas condições, por morte do seu titular, ao descendente primogénito varão». Eu não deixaria de acrescentar que esta instituição, que visava evitar a fragmentação dos bens de raiz, durou de 1253 a 19 de Maio de 1863. Consultar um dicionário devia ser sempre uma experiência que fosse além do que se espera, mais enriquecedora.

 

 [Texto 10 108]

Léxico: «restauracionismo»

Vem no Correio Real

 

      «Nesse sentido, a figura do biografado [D. Duarte Nuno de Bragança, na obra Nas Teias de Salazar. D. Duarte Nuno de Bragança (1907-1976) entre a esperança e a desilusão, de Paulo Drumond Braga. Lisboa: Objectiva, 2017], nascido meses antes do Regicídio e sofrendo — creio que não há outra palavra — com o eco das sucessivas desgraças da primeira república (instituída, ela própria, por um golpe militar periclitante), pode e deve ser um bom ponto de partida para o exame do restauracionismo enquanto esperança, em especial após a morte precoce d’El-Rei D. Manuel II, em Julho de 1932» («A dignidade do silêncio», Vasco Rosa, Correio Real, Junho de 2018, p. 31).

      Qual é o dicionário, qual é ele que usa a palavra restauracionismo e não a regista?

 

 [Texto 10 107]

A falta que a revisão faz

Ainda no Diário de Notícias

 

      Um luxo inalcançável, repito. «Nenhures é aqui, na Quinta do Vale da Ribeira, propriedade de 2,2 hectares para onde se mudou há dois anos, vinda de Sommerset, no sul de Inglaterra. Fica a três quilómetros do Pedrógão de São Pedro, aldeia de 400 habitantes no concelho de Penamacor. Enquanto não acaba de reconstruir a casa de xisto onde quer passar o resto dos dias, Sophia vive numa quinta desde que chegou a Portugal» («Os fugitivos do brexit estão a invadir o concelho mais envelhecido de Portugal», Ricardo J. Rodrigues, Diário de Notícias, 14.10.2018, 6h30).

      Ricardo J. Rodrigues, «Visit Somerset – The Jewel Of The South West», lê-se na página da Internet do Turismo de Somerset. Até recentemente, chegavam a ser mais cuidadosos a escrever noutras línguas do que em português. Enfim, não era consolo, mas vai deixando de ser assim: «Os painéis solares dão-lhe energia para carregar o portátil e o rooter, com internet resolve a vida inteira.» A grande, inadmissível, pouca-vergonha disto tudo, já o tenho dito, é não corrigirem mesmo quando há leitores nas caixas de comentários a chamarem a atenção para os erros. Isto é normal?

 

[Texto 10 106]

As confusões do costume

Malsorteada ortografia

 

      «Com Zizou manteve uma relação de cinco anos, feita de avanços e recuos, de encontros furtivos num apartamento alugado na Place de Clichy, de separações tempestuosas e reencontros fatais nos cabarés de Montmartre. [...] Voltarão a encontrar-se fugazmente em 1966, e passam a noite juntos na véspera da despedida do cantor do Olympia e dos palcos, quando Brel trocou a música por uma mal-sucedida experiência no cinema, como actor e realizador» («Estamos quites, pá», António Araújo, Diário de Notícias, 14.10.2018, 6h07).

      Não é António Araújo jurista? Então, não percebo. Escreveu certa vez Cristóvão de Aguiar no blogue A Destreza das Dúvidas, e já o lembrei algures: «Conta-se uma história verdadeira de um professor da Faculdade de Direito que, numa prova oral, teria mandado o aluno embora, porque este teria dito que vivia num quarto alugado. Ao ouvir isto, o professor respondeu-lhe “Com que então vive num quarto alugado; o melhor será agora arren­dar um automóvel e ir já para o seu quarto estudar melhor a matéria...”» É malsucedido que se escreve, pobre, malsorteada ortografia. Nos jornais, a revisão é agora um luxo inalcançável.

 

[Texto 10 105]

Léxico: «ligatura»

Miscelânea

 

      A propósito de originalite: ontem, quando a tempestade pós-tropical começava a fustigar-nos, com as janelas a ameaçarem estilhaçar-se, pus-me a ler o que tinha mais à mão, e saiu a última revista da SPA. Só agora é que sei que era a última edição, porque, como começo sempre a ler do fim, deparei com o obituário de Altino do Tojal, que eu pensava que já tinha morrido há trinta ou quarenta anos, e tive de ir ver a data na capa. Lá estava: Julho/Setembro de 2018. Isto de usarem fotografias do defunto de há quarenta ou cinquenta anos também é uma pecha muito parva. Enfim, o autor dos Putos morreu este ano (1939-2018), e vou redimir-me lendo na íntegra a obra pela qual é mais conhecido. Mais censurável, a meu ver, é a Infopédia dizer-nos que Altino do Tojal ainda é vivo. Passei a página e que encontro? Isto: «António Arnaut (1936-2018), criador do SNS, escritor e pœta». Assim mesmo, pœta. Com a ligatura œ. Qual gralha, seus ingénuos! Na mesma página obituária, lá está: «Albano Martins (1930-2018), pœta e tradutor premiado». Diga-se, muito a propósito, que quem não souber o que é ligatura também não o saberá lendo a definição do dicionário da Porto Editora: «na escrita, traço que une uma letra a outra, em certos caracteres». Outra originalidade nesta revista: o zero aparece sempre traçado, para não o confundirmos com o O maiúsculo. Nem tudo, porém, é mau: não segue o Acordo Ortográfico de 1990. Para estragos, basta o Leslie.

 

[Texto 10 104]