O que se diz e o que se escreve
Na sua Travessa do Fala-Só, Vítor Santos Lindegaard (aqui) fala hoje dos alfinetes-de-ama e lembra que esta é a única grafia admissível, o que faz recorrendo também à analogia com outras línguas. Bem, única ou talvez não: «E sim, eu sei que alguns dicionários já registam alfinete de dama e fazem muito bem, se há de facto muita gente a dizer assim.» A dizer, sim, mas o problema pode ter começado quando alguém passou para a escrita o que ouvia dizer. Já aqui voltamos a este ponto. Dicionários. Alfinete-de-ama, no Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora: «alfinete cujo bico encaixa numa cavidade, na extremidade oposta, para não se desprender e não picar; alfinete-de-dama, alfinete-de-gancho, alfinete-de-segurança, alfinete-de-bebé». Quatro sinónimos, entre os quais figura aquele que habitualmente se reputa erróneo. Há, porém, quem tenha explicação para este «alfinete-de-dama»: seria semelhante ao alfinete-de-ama, o que as amas usavam para prender as fraldas dos bebés, mas, no caso, eram usados pelas senhoras, pelas damas, para prender o vestuário, assim uma espécie de broche. O que acho estranho: nem sequer um destes quatro sinónimos têm verbete independente no dicionário. Ora bem, há muito que se escreve «alfinete-de-dama», tanto que Leite de Vasconcelos já tratou do caso. A explicação que mais cabalmente me convence é a de Vasco Botelho de Amaral, para quem se trata de um caso de prolepse fonética. O exemplo não é deste autor, mas serve para ilustrar o caso: na Beira Alta, era corrente a expressão «a bem de dizer», que chegou à literatura. Quer dizer, parecia que era essa a expressão. Acontece, porém, que aquele «de» não era propriamente preposição: era o som d da sílaba inicial do verbo «dizer». Dava-se — como também em «alfinete-de-ama» — uma acomodação dos órgãos do aparelho fonador para a pronúncia desta sequência, e a semelhança com a partícula prepositiva fez o resto.
[Texto 10 151]