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Linguagista

Arcanhos e arcanjos, romarias e romanas

Só não sabemos quando

 

      É fatal: por nem sequer estar nos dicionários, o arcanho de Miguel Torga vai ser, mais tarde ou mais cedo, confundido com outra coisa qualquer. Talvez com «arcanjo». Aliás, outra palavra mais simples deste mesmo passo já anda estropiada nos manuais escolares: «Ia escavacar o arcanho. Olarila! Na altura da romana que arranjassem um novo», lê-se no manual de Língua Portuguesa Novo Plural 8, de Elisa Costa Pinto e Vera Saraiva Baptista, publicado pela Raiz Editora (2014, p. 137). 

      O alerta chegou ontem em forma de sugestão: «Na Infopédia, nem “arcanho”, nem “romana” nesta acepção.» Quanto a esta última, ainda bem, não é? As facilidades da informática (imagino que digitalizaram o texto original) somadas ao pouco cuidado dão nisto. Estará assim na última edição?

 

[Texto 10 562]

Léxico: «contratendência/desmielinizante/estatizante»

Dicionários fora dos dicionários

 

    Na Antena Aberta, da Antena 1, um comentador falou numa contratendência que verificava na sociedade; aqui num texto leio que a mielite transversa aguda é uma doença desmielinizante inflamatória da medula espinhal; agora mesmo ouvi na rádio alguém do CDS a falar da ideologia estatizante do Governo. Ora, aqui temos três palavrinhas — contratendência, desmielinizante e estatizante — que o dicionário da Porto Editora ignora.

 

[Texto 10 561]

Léxico: «presunto»

Membro posterior do porco? Era

 

      A propósito de presunto: já não é o que era. Logo, os dicionários não podem continuar a ter a mesma definição. O mais adequado será acrescentar uma extensão de sentido. É que nos últimos anos começou a aparecer presunto disto e daquilo. Ainda ontem, por exemplo, vi num supermercado presunto de peru. Bem sei que já tinha falado disto, mas ninguém ligou. Vamos lá ver, os produtores iam inventar um novo termo, só porque é carne de peru, de pato ou de grilo? Não.

 

[Texto 10 560]

Porcos e javalis, a confusão

Porcos e maus

 

      Falemos de porcos, com vossa licença. Para o dicionário da Porto Editora, é simples: «ZOOLOGIA mamífero artiodáctilo, doméstico, da família dos Suídeos, muito útil por fornecer carne para a alimentação do homem». E o nome científico, onde está? Amnésia parcial. É que no verbete de javali não se esqueceram. Erraram, mas não se esqueceram: indicam que é Sus scrofa, mas isso também o nosso fornecedor de presunto é! Mais rigor: o javali é a subespécie Sus scrofa scrofa, ao passo que o porco doméstico é Sus scrofa domesticus.

 

[Texto 10 560]

Léxico: «cotovelinho»

Que massada, que maçada

 

      «A algumas são adicionados ovos, legumes e outros ingredientes, mas, para esta receita, escolhi os simples e tradicionais cotovelinhos, que, do meu ponto de vista, melhor reflectem a essência da nossa característica massada de peixe» (Papinhas da Xica: Guia de Alimentação para o Primeiro Ano do Bebé, Sandra Santos. Lisboa: Arena, 2018, p. 177).

      No Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, cotovelinho não está registado, e em cotovelo não consta esta acepção. E, contudo, em pevide, por exemplo, vemos que também é a «massa de farinha utilizada geralmente em sopa, com a forma de semente do pepino». Onde está a sistematização?

[Texto 10 559] 

Léxico: «carlim/carlino»

Um cão e uma moeda

 

      O original, francês, falava em carlins, que, no caso, são cães. «Petit chien d’agrément ressemblant au dogue, au poil ras, au museau noir court et aplati» (in Trèsor). Sim, percebia-se logo que se tratava de cães — mas como traduzir? O Dicionário de Francês-Português da Porto Editora traduz assim carlin: «1. (antiga moeda napolitana) carlino; 2. ZOOLOGIA carlim». Estava na hora de saltar para o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora e ver a definição de carlim. Népias, nem carlino nem carlim. Em francês, diga-se, é carlin nas duas acepções. Quanto à moeda, diz o Trèsor: «Ancienne monnaie d’Italie dont la valeur variait selon les royaumes.» O Estraviz é mais informativo: «Moeda de prata de pouco valor, cunhada por Carlos de Anjou, rei de Nápoles (século XIII), introduzida em Espanha através de Aragão. Cunhada posteriormente por Carlos II de Navarra (2ª metade do século XIV).» Em italiano, por sua vez, é carlino nas duas acepções, e, dado que é tudo italiano, vamos ao Treccani. A moeda: «carlino s. m. [dal nome di Carlo I d’Angiò, che fece coniare la moneta nel 1278]. – Moneta del regno di Sicilia, d’oro e d’argento, rappresentante al dritto lo scudo partito di Francia, al rovescio l’Annunciazione della Vergine (detta perciò anche, da questa figurazione, saluto); con lo stesso nome furono indicate altre monete, in uso, con diversi valori e denominazioni (c. di Rodi, c. romano, c. papale, ecc.), fino al sec. 19° in Italia e all’estero.» O cão: «carlino s. m. [dal fr. carlin, dal nome dell’attore Carlo Bertinazzi (1713-1783), detto Carlin, che interpretava a Parigi la parte d’Arlecchino con una maschera nera]. – Cane da compagnia dal corpo robusto e muscoloso, alto da 20 a 30 cm, a pelo corto fitto e lucente, con testa rotonda e massiccia, occhi scuri e prominenti, muso grinzoso e maschera nera.»

      Em conclusão, só o cotejo sistemático dos dicionários bilingues com o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora traria para este larguíssimas centenas de vocábulos. Logo ali ao lado, carlina, com duas acepções, está nos bilingues e não se encontra no da língua portuguesa.

 

[Texto 10 558]

Léxico: «arcanho»

Olarila!

 

      «Ia escavacar o arcanho. Olarila! Na altura da romaria que arranjassem um novo. Daí a pouco, envolvido pela negrura da noite, o coberto, não desfazendo, desafiava qualquer lareira afortunada» (Contos, Miguel Torga. Alfragide: Publicações Dom Quixote, 2017).

      Trás-os-Montes estão muito mal representados no Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, como temos visto. Arcanho? Só acanho.

 

[Texto 10 557]