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Linguagista

«Sem si»

Sensível

 

      De manhã, na FNAC do Chiado, vi um magnífico computador de mesa com ecrã táctil de 28 polegadas. Lindo, perfeito. Não, perfeito não, porque tem Windows, era um Microsoft Surface Studio 2, que custa mais de 4 mil euros. Quis aceder à Internet. Nada: «Não está ligado, e a Web não é a mesma sem si.» Muito lisonjeiro, sem dúvida (até parece que sabia que todos os dias, há anos, contribuo para que a Internet seja um pouco melhor), mas o uso do pronome pessoal na forma reflexa nem sempre é uma boa opção. Caramba, há alternativas. Se é correcto ou não, isso já é outra conversa. Certo é que já Camilo usou — talvez dormitasse — o pronome reflexo desta maneira menos canónica. 

[Texto 11 254]

Léxico: «pogonofóbico»

Tratem-se

 

      A propósito de frades barbudos: leram, já esta semana, a notícia sobre um estudo publicado na European Radiology em que se conclui que há mais micróbios nocivos à saúde na barba dos homens do que no pêlo dos cães? Da próxima vez que uma mulher (ou um homem) for para beijar um barbudo, pondere se não será preferível oscular um buldogue mesmo com baba a escorrer. No Verão passado, conheci a pessoa com mais aversão a barbas que jamais vi. Era um homem que esteve na Guerra Colonial, todo desempoeirado e esperto, mas acho que até tremia quando via um homem de barbas. Um pogonofóbico no mais extremo grau. Precisava de ser tratado. A sorte dele, ainda assim, é o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora não conhecer o termo — embora registe pogonofobia. Há mais alguém a precisar de se tratar.

 

[Texto 11 253]

Léxico: «donato»

Repor a verdade

 

      «Oito anos depois foi ocupado pelos frades Carmelitas de Moura, tendo sido doado à Ordem do Carmo. Em 1423, o Santo Condestável despojou-se das suas riquezas materiais e vestiu o hábito de donato carmelita neste seu convento. Aqui habitou uma pequena cela e morreu em 1431» («De convento a quartel», Luciano Alvarez, Público, 24.04.2019, p. 10).

    O Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora diz-nos que donato é o «leigo que servia em convento de frades e que trazia o respectivo hábito». À primeira vista, diria que a definição está errada. E à segunda também. «Leigo que servia» remete-nos logo para um criado, que os havia nos conventos, sim. Exerciam, é certo, os ofícios mais humildes, mas não eram criados. Mais: «e que trazia o respectivo hábito». Errado: o donato carmelita, ou semifrater, não usava o hábito da Ordem do Carmo, mas sim um tabardo comprido, composto de túnica e capa de fazenda grosseira castanha-escura. E usava barba. O hipster medieval.

 

[Texto 11 252]

Léxico: «peronista»

Até hoje

 

      «Quando Maurício Macri foi convidado para um encontro com a presidente argentina, Cristina Kirchner, dois dias após ter derrotado o candidato peronista que ela apoiava, pensava que ia começar a tratar da transição de poder. Afinal, toma posse já no dia 10 e o país tem de continuar a andar independentemente das cores políticas. Mas Macri saiu da reunião desiludido: “Não valeu a pena”, disse aos jornalistas. Um mau augúrio para o futuro presidente que, sendo o terceiro não peronista eleito desde o fim da ditadura (1983), quer ser o primeiro a conseguir acabar o mandato» («Será Macri o primeiro presidente não peronista a acabar o mandato?», Susana Salvador, Diário de Notícias, 28.11.2015, 00h04).

      Está em quatro textos de apoio da Infopédia. Ninguém, até hoje, se lembrou de o registar no Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora — que, contudo, acolhe peronismo. 

 

[Texto 11 251]

Léxico: «digestão/ correctivo»

O mundo não pára nem espera

 

      «Portugal está muito perto de ter um novo contentor: o castanho, do lixo orgânico. No fundo, o que já acontece em algumas zonas do país com restaurantes e indústrias passará a estar acessível para todos os cidadãos» («Portugueses vão ter um novo contentor de reciclagem em breve: o castanho», Inês André de Figueiredo, TSF, 24.04.2019, 15h03).

      A TSF foi ouvir Ana Loureiro, da Environment Global Facilities, que usou acepções desconhecidas da generalidade dos dicionários, e desde logo do dicionário da Porto Editora: disse que, no processo de tratamento dos resíduos orgânicos, se produz energia eléctrica da digestão desses mesmos resíduos orgânicos, e, na compostagem, o resultado final é um correctivo orgânico, usado na agricultura, florestas, etc. Nestas acepções, digestão e correctivo não estão naquele dicionário.

      Há quem se recuse (se bem que apenas na teoria) a avançar para cá do século XIX no que à língua diz respeito, mas isso é, não apenas indesejável, mas impossível.

 

[Texto 11 250]

«Ultraproximidade»?

Já não chega a proximidade

 

      «Este ano o grupo Auchan vai contrariar essa tendência, com a abertura de um hiper na Grande Lisboa. “Outro objetivo passa por continuar a abrir lojas MyAuchan, o formato de ultraproximidade, um conceito diferenciador de lojas de bairro nos grandes centros urbanos, onde conseguimos maior proximidade com os consumidores e garantimos uma oferta alargada, qualidade, variedade, digitalização e baixo preço. São lojas entre os 200 e 500 m² onde aplicamos os mesmos compromissos da marca Jumbo”, refere Ricardo Fonseca» («Auchan prepara abertura de novo hipermercado na Grande Lisboa», Ana Marcela, Dinheiro Vivo, 24.04.2019, 15h15).

 

[Texto 11 249]

Léxico: «cadastro»

Mas quem é que sabe?

 

      «O ministro do Ambiente e Transição Energética defende o alargamento do sistema de informação cadastral simplificada a todo o país como “um instrumento indispensável” para conhecer o território e para a definição das políticas públicas. [...] A figura de técnico de cadastro predial é considerada fundamental para que este processo possa ser agilizado, com garantia de qualidade desse mesmo trabalho» («Cadastro simplificado é “indispensável” para conhecer proprietários dos terrenos, diz ministro do Ambiente», Rádio Renascença, 24.04.2019, 17h51).

      A definição de cadastro, no sentido do artigo, estará bem nos dicionários? Vejamos no da Porto Editora: «registo público dos prédios rústicos ou urbanos de uma localidade ou região, com discriminação da sua extensão, qualidade e valor». Discriminação da qualidade? Hum... Apesar de, tal como a manteiga, os ovos ou as hortaliças, os legisladores, basicamente juristas, já não serem como eram há umas décadas (alguns escrevem miseravelmente, na verdade), nestas coisas, já sabem, prefiro ver o que diz a lei, e a lei define cadastro predial como «o registo administrativo, metódico e actualizado, de aplicação multifuncional, no qual se procede à caracterização e identificação dos prédios existentes em território nacional». Aliás, também os baldios e as áreas urbanas de génese ilegal (AUGI) são objecto de cadastro predial.

 

[Texto 11 248]