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Linguagista

Léxico: «vossa mercê»

Por mercê

 

      «Volta o comissário numa pressa, e desata a esclarecer, “é um mendigo, senhor, que por força deseja avistar-se com Vossa Mercê, e declara que muito foi ele da privança vossa, e que o que tem para aduzir só defronte de Vossa Mercê aduzirá, e que não é quem se julga que poderá ele ser, e assevera que por bem vos procura, e que sobejamente o conhece o almirante do Mar da Índia, mas que não pretende declarar o nome, pois que importa um nome, pergunta ele, se o que monta é a alma que lhe mora por dentro» (Peregrinação de Barnabé das Índias, Mário Cláudio. Alfragide: Publicações Dom Quixote, 2017, p. 21).

      Não deixa de ser estranho que o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora não registe esta forma de tratamento, grafada habitualmente com maiúsculas.

 

[Texto 11 291]

«Magro, magríssimo, macérrimo»

O cavalo magérrimo dos lexicógrafos

 

      «Um enorme mural, que ainda lá está, mostra um dos casais do século: Serge Gainsbourg e Jane Birkin, a inglesa lindíssima, magérrima, que gemeu “Je t’aime... moi non plus” para escândalo do mundo inteiro. Conheceram-se em Maio de 1968; ao princípio Jane não achou graça à pose arrogante dele, mas rapidamente cedeu à sedução da sua profunda timidez e imensa fragilidade» («Porque era ele, porque era eu», António Araújo, Diário de Notícias, 27.04.2019, 6h10).

      Aposto que António Araújo sabe que magérrimo não é a forma recomendada, mas sim macérrimo. Nem sempre, porém, é por opção consciente: o falante pensa que está bem, e usa-a. Perguntado sobre a opção, até a defende, se for preciso (sobretudo se se tratar de um intelectual). Bem, seja como for, se não a encontramos no Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, tropeçamos nela no Dicionário de Neerlandês-Português da mesmíssima Porto Editora: a «uitgemergeld paard» corresponde «cavalo magérrimo».

 

[Texto 11 290]

Fugir das dificuldades

Dúvidas ao fim do dia

 

      «Lesão ulcerovegetante no lábio inferior que —» Alto! Temos aqui um problema, ou até dois. O dicionário da Porto Editora não regista ulcerovegetante. Contudo, na entrada «doença de Bowen», do Dicionário de Termos Médicos, usam o termo com esta grafia. A questão é: será a grafia correcta? E se for úlcero-vegetante, já pensaram? Não corram para o vocabulário de Rebelo Gonçalves, será em vão. Prossegue o relatório médico: «... apresentando cor negro-azulada —» Alto! Então porque é que o dicionário da Porto Editora no verbete alfrocheiro descreve esta casta como de «cor negra azulada»?

 

[Texto 11 288]

Léxico: «Alfrocheiro-Preto»

Pouca-roupa

 

      O tinto alentejano Pouca Roupa é produzido com três castas: Alicante Bouschet, Touriga Nacional e Alfrocheiro. Sim, o dicionário da Porto Editora regista tudo isto (mas não grafa as castas com maiúscula inicial — como quase sem excepção toda a gente faz), incluindo pouca-roupa, ou fraca-roupa. Acontece, porém, que no Dão essa casta toma o nome de Alfrocheiro-Preto, nome que aquele dicionário não acolhe. Como não acolhe, por exemplo, encepamento.

 

[Texto 11 287]

Léxico: «cronossistema, exossistema, macrossistema, mesossistema»

Não queremos isso, doravante

 

      Uma hipótese é que se possa atribuir ao dessistema que os nossos dicionários não acolham, como deviam, os termos cronossistema, exossistema, macrossistema, mesossistema. O que depois acontece é que, sem o amparo firme dos dicionários, muitos dos nossos queridos tradutores, os mais proclives, se espalham ao comprido. Não queremos isso, pois não, Porto Editora?

 

[Texto 11 286]

Léxico: «iéti / pé-grande»

Não é essa a opção

 

      O Exército indiano veio agora divulgar imagens que julgam mostrar indícios da criatura mítica conhecida como Iéti ou Abominável Homem das Neves, que habita a cordilheira dos Himalaias. Abominável também é os nossos dicionários não registarem iéti, mas apenas o estrangeirismo, isto quando até os tradutores optam pelo aportuguesamento. «O que não disse à turma foi o seguinte: enquanto o fantasma de Maurice Wilson relatava, com todo o paciente pormenor, a sua própria ascensão, e também as suas descobertas póstumas, como por exemplo a lenta, complexa, infinitamente delicada e invariavelmente estéril parada nupcial do iéti, a que recentemente assistira no Desfiladeiro Sul – ocorreu a Alleluia que a sua visão do excêntrico de 1934, o primeiro ser humano a tentar escalar sozinho o Everest, ele próprio uma espécie de abominável homem das neves, não fora um acidente, mas sim como que um sinal, uma declaração de parentesco» (Os Versículos Satânicos, Salman Rushdie. Tradução de Ana Luísa Faria e Miguel Serras Pereira, Alfragide: Publicações Dom Quixote, 12.ª ed., 2018, p. 229). Aliás, não acolhem iéti nem a criatura aparentada das regiões selvagens e remotas dos Estados Unidos e Canadá — o pé-grande.

 

[Texto 11 285]