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Linguagista

O AO90 no dia-a-dia

A língua vai nua

 

      «Na introdução da sua conferência, Mauss evoca o contexto no qual ele é levado a forjar este conceito de técnicas do corpo. Este conceito impõe-se pouco a pouco nele, de forma “concreta”, em resposta a diferentes observações realizadas ao longo da sua vida. Estas reteriam a sua atenção pelo conjunto de fatos sociais, aparentemente, “heterógenos” e inclassificáveis, que a etnologia da época não sabia como descrever e categorizar, levando, assim, a colocar um item de “diversos”. O conceito de “técnicas do corpo” permitiram-lhe [sic] reunir justamente numa mesma categoria um conjunto de fatos saídos de observações diversas e de ser um objeto digno de análise científica. [...] O estudo do corpo era, antes de mais, um fato das ciências naturais (biologia, medicina), que o tratavam como um objeto natural (exemplo: usos da dissecação para estudar o seu funcionamento)» («As técnicas do corpo e o desporto», Vítor Rosa, A Bola, 5.07.2019, 00h02).

      Não é qualquer pessoa que consegue escrever assim. Eu não consigo. O autor é sociólogo, doutor em Educação Física e Desporto, ramo Didáctica, e investigador integrado do Centro de Estudos Interdisciplinares de Educação e Desenvolvimento, da Universidade Lusófona de Lisboa. Se é assim com um doutorado, bem se pode imaginar como será com o falante comum.

 

[Texto 11 692]

Léxico: «neuromodulação»

Não sei que diga

 

      «Há casos em que nem a cirurgia trata a dor. “Cerca de 5 a 10 % das pessoas com dores nas costas evoluem para uma dor crónica”, realça o neurocirurgião Miguel Casimiro. Para estes casos, os tratamentos têm de ser repetidos regularmente ou pode-se recorrer à neuromodulação. “São elétrodos implantados no nervo, na medula ou no cérebro — dependendo da situação — e que lançam uma corrente elétrica de alta frequência que interfere nos circuitos de perceção da dor”, explica Miguel Casimiro» («7 tratamentos para a dor», Raquel Lito e Susana Lúcio, Sábado, 17-23.01.2019, pp. 44-45).

      Já é muito conhecido, mas nem sequer os dicionários de termos médicos o registam. Não sei que diga sobre isto.

 

[Texto 11 691]

Léxico: «atum-rabil»

E ainda há mais

 

      «Para começar a refeição, os conhecidos petiscos a que dificilmente se resiste, como os búzios gratinados e o mexilhão à guilho, ou novidades, como o tártaro e o pica-pau de atum-rabil (vendido na lota desde janeiro, quando passou a ser possível a pesca), cuja carne é saborosíssima» («Tudo (ainda) mais apurado», Manuel Gonçalves da Silva, Visão, 27.06.2019, p. 110).

      O que o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora regista é atum-rabilho, mas não é o mesmo.

 

[Texto 11 689]

Léxico: «Barnabitas/barnabita»

Outros tempos

 

      Toda a gente sabe que hoje a Igreja celebra a memória litúrgica de Santo António Maria Zacarias (1502-1539). Está bem, corrijo: quase ninguém sabe. António Maria Zacarias, médico (um médico santo!) e presbítero, foi o fundador dos Barnabitas (Ordem dos Clérigos Regulares de São Paulo). Na Infopédia, a palavra anda perdida nos bilingues.

 

[Texto 11 688]

Léxico: «biocomposto»

Então fiquem mais atentos

 

      «O projeto que vai desenvolver com o apoio local está vocacionado para o aproveitamento dos biocompostos que existem nos desperdícios da cereja, como a flor, a folha e o caroço, na produção de cremes cosméticos» («Alfândega da Fé apoia negócios para chamar e fixar jovens no concelho», Diário de Notícias, 7.09.2017, 21h11).

      «A palavra pesquisada não foi encontrada neste dicionário. Verifique se a palavra ou expressão introduzidas estão bem escritas e pesquise novamente.»

 

[Texto 11 687]

Língua-mãe | língua materna

Pois, já vimos isto antes

 

      «Esta é a história de um idílio que vira do avesso aquilo que comummente se entende por língua materna. Mais concretamente, a história de um escritor que, no crepúsculo da vida, aos 80 anos, decidiu abandonar a língua inglesa, com a qual toda a vida escreveu e ainda escreve, para adotar como língua literária o castelhano. Complicado? John Maxwell Coetzee fez esta inversão, esta mudança de pele — esta quase impossibilidade» («O Nobel da Literatura que renegou a língua-mãe», Luciana Leiderfarb, Expresso Diário, 17.06.2019).

      Em que ficamos, Luciana Leiderfarb, é língua-mãe ou língua materna? Volte à casa 1 e leia três vezes o verbete «língua» num bom dicionário.

 

[Texto 11 685]

Léxico: «berriasiano | maastrichiano»

Dá muito trabalho

 

   «“Temos toda a sequência, desde a idade Berriasiana até à Maastrichiana, todo [o Cretácico] está representado. Nos outros países há hiatos, há andares que não estão lá. Não é por acaso que os estrangeiros vêm cá, levam o nosso material e, depois, nós ficamos prejudicados e ninguém quer saber”, lamenta [Mário Mendes, investigador do MARE – Centro de Ciências do Mar e Ambiente da Universidade de Coimbra]» («Está o “abominable mystery” de Darwin perto de ser desvendado?», Beatriz Dias Coelho, i, 4.07.2019, 20h33).

      Queriam ver éons, eras, períodos, épocas e idades geológicas nos nossos dicionários, tudo com definições claras? Não pensem nisso.

 

[Texto 11 684]

Léxico: «golpelha | gorpelha»

Reconhecida

 

      «Naqueles tempos, a fazenda onde vivia a família de Manuel Estêvão – e por onde passava uma ribeira, daí a alcunha que ficou para sempre – era bastante requisitada no que a esta arte diz respeito. “As pessoas da serra não sabiam fazer e vinham encomendar à minha mãe e à minha avó. Havia aquelas gorpelhas grandes para pôr em cima dos burros, para apanhar alfarrobas, figos secos... Serviam também para semear o trigo, o adubo: punha-se um braço para enfiar no ombro, a saca cheia de trigo e adubo e vá de semear aí pelas terras. Toda a gente encomendava a elas. Mas nem era a dinheiro, era a troco de milho, batatas, coisas assim. Só nas feiras é que se vendia a dinheiro, mas era uma bagatela”, lembra» («Empreita. Nunca é tarde para aprender... nem para ensinar», Bruno Venâncio, i, 3.07.2019, 21h44).

      É uma das críticas que faço aos dicionários dos nossos dias, pois é um aspecto que contribui para o empobrecimento da língua: não registarem todas as variantes. No caso em apreço, que mereceu a atenção de filólogos e estudiosos da língua ao longo do tempo, é sabido que no Algarve se usa a variante gorpelha. Se os tais dicionários apenas registam golpelha, o que vão pensar os falantes?

 

[Texto 11 683]