Léxico: «correio | mula»
Casmurrices e aselhices
«Dois “correios” de droga detidos à chegada a Portugal» (Jornal de Notícias, 20.07.2019, p. 21).
É uma acepção de correio que se vê cada vez mais na imprensa. Serve para substituir o brasileirismo mula. O que me traz à mente outro erro de uma tradução do castelhano: no original, estava camello, que o tradutor verteu para «mula». Ora, basta ver no DRAE: «m. coloq. Persona que vende drogas tóxicas al por menor.» Ou seja, ao nosso correio/mula corresponde o castelhano correo; o camello castelhano é o nosso passador. O que me leva a isto: «The Mule, ou O Correio de Droga (desastrada tradução), é um pequeno grande filme, para todas as idades e crenças, na melhor tradição de Hollywood – que, infelizmente, os Oscars não souberam valorizar» («Um super Clint (Eastwood) no filme “The Mule – O Correio de Droga”», Manuel Halpern, Visão, 1.02.2019, 7h00). Suponho (não vi o filme) que a crítica à tradução tem que ver com as várias acepções de mule, que, além de correio de droga, também significa pessoa muito casmurra. Como o crítico nada explica, ficamos assim. (Ou não, devemos chamar-lhe a atenção para este erro crasso no seu artigo: «Sobre vários pontos de vista, Clint Eastwood é o maior herdeiro de John Ford. Insiste num cinema “clássico”, com uma estrutura linear em que se conta uma boa história, nunca perdendo de vista a escala humana e as dimensões interiores das personagens com todas as suas contradições.»)
Avancemos um pouco mais: mula, para o dicionário da Porto Editora, é um termo coloquial brasileiro que designa a «pessoa que transporta droga através de fronteiras internacionais, frequentemente dentro do próprio estômago». Como há quem entenda (sem afirmar que é brasileirismo) que mula é sobretudo o transporte de drogas que atravessa fronteiras, não apenas a tradução de camello estaria certa se se optasse por «mula», como seria a tradução ideal do título do filme de Clint Eastwood — o protagonista, que seria obstinado e no fim acabaria como passador de droga. Na intenção do realizador, estaria então este duplo sentido do termo, que a tradução portuguesa arruinaria.
Retomando a definição daquele dicionário: «frequentemente dentro do próprio estômago». «No corpo», diria eu. Nos últimos tempos, lemos notícias em que se diz que estava escondida no ânus, na vagina, na boca, colada ao tronco, debaixo do capachinho...
[Texto 11 819]