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Linguagista

Léxico: «lírio-do-vale | convalária»

Quem teria confiança?

 

      Quando, em convale, o dicionário da Porto Editora nos diz que é o adjectivo «designativo de um lírio branco que dá flor em Maio», não devia identificar esse lírio como o lírio-do-vale? Sinónimo deste é lírio-de-maio, mas infelizmente, num erro que ainda ninguém viu, mas que dá sempre frutos indesejados, aquele dicionário regista-o com a grafia «lírio-de-Maio». Ainda relacionado com esta planta, o que me deixa de boca aberta é a nota etimológica em convalária: «Do latim convalle-, “lírio branco” +-ária». Julgo entreadivinhar o que pretendem dizer. Em latim, como em português, convales são vales rodeados de colinas. Lilium convallium. Descendo (ou subindo) a minudências de coca-bichinhos, reparem: porque é que antes do sinal + deixaram um espaço mas não depois? Assim, +- ficaram pegados e ambos em itálico. Isto equivale a, na montagem de um motor complexo, deixar uns quantos parafusos semiatarraxados. Quem teria confiança, se suspeitasse ou visse?

 

[Texto 12 058]

Léxico: «libra»

A próxima libra

 

      Já se conhece a composição da libra, a criptomoeda do Facebook: dólar americano (50 %), euro (18 %), iene (14%), libra esterlina (11 %) e dólar de Singapura (7 %). Portanto, nada de iuane. Entretanto, já pensaram nesta homonímia? Pois, em português, porque em inglês é pound sterling e libra. Claro que têm tudo que ver, o símbolo da libra esterlina é £, o ele de libra pondo, a unidade de medida do Império Romano. Se o projecto avançar, como parece quase inevitável, já estou a ver os nossos jornalistas em palpos de aranha por causa do símbolo. Anotem-no aí: ≋. Não têm de quê.

 

[Texto 12 057]

Léxico: «espirotromba | gálea»

Estrutura anatómica

 

      Num artigo belamente ilustrado do Público de ontem («A biodiversidade a voar pelos ares», Claudia Carvalho Silva, pp. 32-33), e mais concretamente numa legenda, lê-se a palavra espirotromba, que é o nome que tem a tromba em forma de espiral dos insectos lepidópteros, resultado da modificação das gáleas das maxilas das borboletas. O dicionário da Porto Editora desconhece espirotromba, e quanto a gálea jura e tresjura que não passa de um «antigo capacete de guerreiro; elmo» ou então a «dor de cabeça que dá a sensação de que um gorro de ferro aperta o crânio». Aliás, o termo tem também usos específicos em botânica.

 

[Texto 12 056]

Léxico: «monçónico»

Pouco havia para errar, mas

 

      «O pior é nas semanas que antecedem o início da monção, mesmo se no Karnataka se achem oásis à vista da inclemência climática pré-monsónica» («Viagem de comboio à quintessência da Índia», Humberto Lopes, «Fugas»/Público, 7.04.2019, p. 7).

       O jornalista devia ter reparado no erro, claro, mas é incompreensível que o adjectivo monçónico não esteja nos nossos dicionários. No VOLP da Academia Brasileira de Letras, contudo, encontramo-lo.

 

[Texto 12 055]

Léxico: «voluta | leque»

Ganham os mestres

 

      «As etapas da aprendizagem são muitas e complexas: seleção de madeiras, ferramentas e equipamentos técnicos, modelação das ilhargas, experimentação da ilharga na forma, colocação no braço, colagem do tampo, afagamento, abertura de friso de embutidos, ensaio do encaixe do braço no corpo da guitarra, aplicação por colagem da madrepérola, desbaste do braço da guitarra, polimento, aplicação de escala e trastos, entalhamento da voluta, aplicação de leque, encordoamento e afinação, construção de unhas e palhetas» («Quem quer ser guitarreiro?», Sara Inácio, Lisboa, revista municipal trimestral, Junho de 20019, p. 58).

      Leque, o dispositivo mecânico destinado a afinar as cordas, inventado por um inglês, não está nos nossos dicionários. Quanto a voluta, o caso é outro: os dicionários garantem-nos que é a parte superior do braço dos instrumentos musicais de arco. Os mestres guitarreiros afirmam que é também a parte superior da guitarra, que é um instrumento de cordas. Pois é. E mesmo a ilharga é sumariamente despachada, no dicionário da Porto Editora, por uma «parte lateral de um navio e de alguns objectos». Tal como trasto está definido de uma forma dúbia.

 

[Texto 12 053]

Léxico: «germinoma | anancastia | anancástico»

Falta o principal

 

      «Rui Rocha tem 15 anos e foi-lhe diagnosticado, há pouco mais de um mês, um tumor maligno no cérebro (germinoma puro), inoperável» («Jovem precisa de ajuda para lutar contra tumor», Salomé Filipe, Jornal de Notícias, 13.08.2019, p. 24).

      O dicionário da Porto Editora (e outros, e outros) ignora-o; aliás, até o Dicionário de Termos Médicos. E, contudo, regista, por exemplo, e como mais semelhante, seminoma, um tumor maligno do testículo. Pior, a meu ver, é, a par de termos que estão nos dois dicionários, haver outros que só estão no de termos médicos. Sei lá, por exemplo, anancastia não devia estar em ambos? Não está. Mais: anancástico não devia estar em ambos? Não está em nenhum deles. Não me surpreenderia se me dissessem que até se usa mais «anancástico» (personalidade anancástica, transtorno anancástico, etc.) do que «anancastia». 

 

[Texto 12 052]

Léxico: «criosfera»

De repente, duas vezes

 

      «Na apresentação do primeiro relatório especial do IPCC sobre o oceano e a criosfera, a sua vice-presidente Ko Barrett assegurou que “as consequências para a natureza e para a humanidade são vastas e severas”» («​Efeitos das alterações climáticas nos gelos e oceanos já são irreversíveis», Rádio Renascença, 25.09.2019, 19h24).

      Estive vários anos sem ver a palavra. Na última semana, é a segunda vez que topo com ela. Está nos nossos dicionários, sim, mas gostava que, nem que fosse a título exemplificativo, a definição indicasse algumas das formas por que aparece a água sólida no nosso planeta. Há muito por onde escolher.

 

[Texto 12 050]

Léxico: «torgo | torgainha»

Vão desaparecendo

 

      Ia ontem à tarde ali a descer uma rua, olho para o lado e vejo o toldo de um restaurante: Restaurante Torgo. Ora, e Camilo, no romance Anátema, não escreve «um farto braseiro de carvão de torgos abrasara a atmosfera do pequeno quarto da menina»? Levou sumiço nos modernos dicionários. Rebelo Gonçalves, na página 1012 do seu Vocabulário da Língua Portuguesa, lá regista torgo. E torgainha, cujo verbete também desapareceu dos actuais dicionários. José Pedro Machado não se esqueceu destas duas, e quanto a «torgo» dá-o como sinónimo de «torga». Ainda um dia temos de recorrer apenas aos dicionários galegos para suprir estas faltas vergonhosas. Os torgos queimábanse para facer carbón.

 

[Texto 12 049]