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Linguagista

Palavras desnecessárias

Então inventa-se

 

      «Em vão se poderia procurar nos discursos políticos contemporâneos vestígios de grandes oradores portugueses, de António Vieira a Garrett ou até Brito Camacho, o político republicano que começou um discurso criticando uma lei do Governo da época com a imortal frase “No tempo em que os animais falavam (falavam mas não escreviam)” – o que hoje seria alvo de uma severa admoestação do presidente da Assembleia da República, outro orador que não se distingue pela capacidade de empolgar audiências antes pelo rigor cronométrico com que interrompe as divagações elucubratórias dos parlamentares» («Domingo à tarde», José Júdice, Diário de Notícias, 8.01.2024, p. 2).

      José Júdice queria dizer «elucubrativas», mas fiou-se na memória e a coisa correu mal. Antes de certa idade e depois de certa idade, os falantes julgam poder dispensar a consulta do dicionário. 

 

[Texto 19 230]

Léxico: «bancada»

Ora, isso é curioso

 

      Decorreu por estes dias o X Festival das Sopas, nas Furnas, S. Miguel, para angariar fundos para a Paróquia de Santana. Foram vinte e sete sopas diferentes. Ah, sim, os fundos: sobretudo para a reparação da «bancada principal da Igreja das Furnas». Assim disse um dos organizadores da iniciativa. Ora, é curioso que na descrição de bancada, nas várias acepções, nos nossos dicionários não conste a palavra «igreja» e pelo menos num dicionário brasileiro, o Michaelis, esteja logo na primeira acepção. Isto também, é claro, graças à boa prática de indicar exemplos de uso.

 

[Texto 19 229]

Léxico: «justiça restaurativa»

Sintomático

 

      «Pistorius conheceu o pai de Reeva, Barry Steenkamp, em 2022, num “diálogo vítima-infrator”, parte integrante do sistema de justiça restaurativa da África do Sul. Baseada, em parte, na forma como as culturas lidaram com crimes muito antes de os europeus colonizarem a África do Sul, a justiça restaurativa visa encontrar um encerramento para as partes afetadas, em vez de meramente punir os perpetradores» («Oscar Pistorius sai da prisão 11 após assassinato da namorada», Bhargav Acharya e Siyabonga Sishi, Folha de S. Paulo, 6.01.2024, p. B7). Devia ser o escopo de toda a justiça, mas nem sequer figura nos nossos dicionários. Não sai dos manuais de Direito.

 

[Texto 19 228]

Léxico: «excomunhão latae sententiae»

A ignorância não é o caminho

 

      «Un sacerdote de la parroquia italiana de Guasticce (norte) ha sido excomulgado por afirmar que Francisco “no es el papa”, sino “un usurpador”, durante su homilía de la misa de Fin de Año, según confirmó el episcopado de Livorno en un comunicado. El obispo, monseñor Simono Giusti, ha decretado la excomunión latae sententiae, es decir, no reservada a los pontífices, contra el cura acusado de estos hechos, Ramon Guidetti, alegando que cometió “públicamente un acto de naturaleza cismática”» («Excomulgan a un párroco italiano por tildar al papa Francisco de usurpador», La Voz de Galicia, 3.01.2024, p. 24).

      Somos um país católico, mas depois os próprios crentes (para não falar dos outros, claro) não sabem o que significam estes termos. Os dicionários também não ajudam. Parte-se sempre de uma de duas ideias, ambas erradas: as pessoas já sabem ou as pessoas não precisam de saber.

 

[Texto 19 227]

Léxico: «dessegregar | dessegregação»

Não as merecemos, mas está bem

 

      «El autor [Dennis Lehane] de ‘Mystic River’, ‘Adiós pequeña, adiós’ o ‘Shutter Island’, nombre propio de la novela negra, vuelve ahora a la ciudad de su vida con ‘Golpe de gracia’ (Salamandra), donde relata la desaparición de una adolescente en el verano de 1974, la misma noche que un joven negro aparece muerto en las vías del tren. Son los tiempos de la desegregación racial de las escuelas públicas, que ocasionaron grandes protestas y estallidos de violencia» («“Blanquear la historia y la cultura es un acto estalinista”», Bruno Pardo Porto, ABC, 6.01.2024, p. 38).

      Evidentemente, também temos o termo dessegregação — é o antónimo de segregação. Tem-lo, Porto Editora, num bilingue. Já o tenho visto — ó surpresa! — confundido com «desagregação». Além deste e do respectivo verbo, ainda temos dessegregado, dessegregador, dessegregamento, dessegregante, dessegregatório e dessegregável. Assim haja saúde para usufruir de tantas palavras.

 

[Texto 19 226]

Definição: «urina»

Sim, pois, mas a cor?

 

      «Desde hace siglos, los científicos se han preguntado por qué la orina es amarilla. Un equipo de investigadores estadounidense ha descubierto que el responsable del color amarillento es una enzima denominada Bilirubin reductase. En un estudio publicado ayer en Nature Microbiology, un grupo de la Universidad de Maryland (EE.UU.) dirigido por el profesor Brantley Hall reveló el hallazgo. “El descubrimiento de esta enzima finalmente desentraña el misterio del color amarillo de la orina. Es increíble que un fenómeno biológico cotidiano no tuviese explicación durante tanto tiempo, y nuestro equipo está encantado de poder explicarlo”, declaró Hall en un comunicado» («Descubren por qué la orina es de color amarillo», La Voz de Galicia, 4.01.2024, p. 22).

      Os dicionários brasileiros descrevem a urina como um líquido de cor amarelada, os nossos ainda não aplicaram bem os lúzios na matéria, quando, afinal, é uma característica definidora.

 

[Texto 19 225]

 

 

P. S.: Também ficamos intrigados que urobilina, no caso dos dicionários da Porto Editora, esteja no dicionário geral e urobilinogénio se tenha refugiado no dicionário de termos médicos.

 

Léxico: «recasado»

É bem possível

 

      «Acolher e integrar o estrangeiro é a essência do catolicismo, que é uma ponte entre classes e etnias; o catolicismo não é um muro, muito menos um castelo para defender numa lógica de seita de puros fechada ao mundo. Por outro lado, se não pode ser um castelo contra estrangeiros, o catolicismo não pode ser um forte contra minorias no campo dos costumes; não pode ser uma paliçada contra gays, lésbicas, trans, recasados, convertidos tardios» («Um católico que vota Chega é um traidor», Henrique Raposo, Expresso, 8.01.2024, 11h58). Só vejo o vocábulo recasado no VOLP da Academia Brasileira de Letras. Só no Brasil... Serão eles mais próvidos, mais inteligentes do que nós?

 

[Texto 19 224]