Linguagista

Se quisermos, será clarinho como a água

      O rosário é composto por vinte mistérios (acontecimentos, momentos significativos) da vida de Jesus e de Maria, divididos depois da carta apostólica Rosarium Virginis Mariae em quatro coroas. A primeira coroa abrange os mistérios gozosos (de alegria, segundas-feiras e sábados); a segunda os luminosos (que são a vida pública de Jesus, modelo para a nossa existência, às quintas-feiras); a terceira os dolorosos (para recordamos os sofrimentos e violências do mundo, sentindo Jesus a caminhar connosco, às terças e sextas-feiras); a quarta os gloriosos (que celebram a vitória do bem sobre o mal, às quartas-feiras e domingos). Ora, o dicionário da Porto Editora só em gozoso tem uma acepção relativa à religião: «RELIGIÃO diz-se dos mistérios da Ressurreição, no rosário». E também tenho dúvidas que a definição de mistério nesta acepção seja tão clara que qualquer pessoa, crente ou não, compreenda. Ou então sou eu que sou muito exigente e pessimista.

[Texto 19 744]

Ou não se perceberá

      «Segundo documentos da Verint repassados por um ex-funcionário da empresa à Folha, a venda casada dos produtos é sugerida a clientes pelo menos desde 2013» («Exército comprou maleta espiã que intercepta ligações», Cézar Feitoza e Thaísa Oliveira, Folha de S. Paulo, 28.04.2024, p. A9).

      Nos nossos dicionários, como locução, apenas figura venda a retro, e pronto, Satanás, nada mais. Já o brasileiro Michaelis acolhe dezassete locuções. É obra. Começaram a trabalhar há muitos anos, é isso. Porventura logo a 7 de Setembro de 1822.

[Texto 19 743]

Como é segredo, nada dizem

      Ontem falei aqui em frigideira, não a espécie de solitária do Tarrafal, mas o pastel de Braga, a idolátrica. Então hoje é de segredo que falamos, o lugar separado numa prisão: «Marcelo, ele próprio um nadador inveterado, quis saber todos os pormenores da fuga de Dias Lourenço em 1954, desde o Segredo (cela de castigo num promontório da fortaleza) até à forma como saltou do forte-prisão e nadou contra a corrente num mar bravio e frio numa noite de Dezembro. “Ele estava certo ao contar as ondas, que no Atlântico são numa sucessão de sete”, comentou o Presidente» («Peniche pode vir a integrar rede internacional de museus da resistência», Carlos Cipriano, Público, 28.04.2024, p. 25). Também não o vejo nos nossos dicionários.

[Texto 19 742]

Está na hora

      «As avarias mais frequentes são causadas por componentes elétricos – baterias, fusíveis, testemunhos, fechos, elevadores [de] vidros, cablagens – representando 13% do total. As marcas com mais problemas são a Alfa Romeo, Fiat, Opel, Dacia, Renault e Skoda» («Eis os automóveis mais fiáveis para os europeus», Carlos Moura, Turbo, 7.05.2024).

      Não está em nenhum dos nossos dicionários, o que significa que ninguém anda a ler os manuais dos automóveis. Olhem, aproveitem e leiam este.

[Texto 19 741]

Entre muitos outros esquecimentos

      Não andamos a ligar nada aos vários madeirensismos, como boganga, variante de moganga, e tanarifa, variante de tenerife, e abóbora-de-tenerife, por exemplo. Ainda eles se zangam e declaram a independência. Bem, já falaremos disto.

[Texto 19 740]

Ou em todos ou em nenhum

      Será mesmo necessário dicionarizar todos os advérbios de modo? Não, e, sem ser impossível, não é facilmente exequível. Mas não me parece fazer sentido registar alguns — como, valham a título de exemplo, apavoradamente e temerosamente — apenas em dicionários bilingues e não no dicionário geral.

[Texto 19 739]

Mas depois aparece

      «Livro que lemos com o interesse raro de estarmos perante um trabalho precioso, com o mérito mesmo de servir, na hora que passa, os altos interesses de Portugal, na problemática que se põe a conservação de um património herdade dos ancestres e sempre contestado ou cobiçado pela voracidade das altas potências» (Parágrafos de Literatura Ultramarina, Amândio César. Lisboa: Sociedade de Expansão Cultural, 1967, p. 229).

      Aparece sobretudo na poesia. Infelizmente, de quase todos os dicionários já desapareceu. O falante que se lixe, não é?

[Texto 19 738]