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Linguagista

Depois de «extras», «recordes»

Aguardemos novos episódios

 

      O Público vai pacientemente — mas não sei se deliberadamente — derruindo essa ideia infeliz que se pegou aos miolos de muitos linguistas de que temos um rol de adjectivos invariáveis. O caso mais flagrante e chocante é o de extra, que já aqui vimos muitas vezes e continuaremos a ver. Hoje é recorde, menos óbvio, é certo, um pouco diferente, mas que a lógica irmanaria: «A Rússia prevê aumentar para valores recordes os gastos com a defesa no próximo ano, dando indicações de que o Kremlin espera que o conflito na Ucrânia não se resolva politicamente no curto prazo» («Gastos com a defesa na Rússia atingem valores recordes», João Ruela Ribeiro, Público, 2.10.2024, p. 21).

[Texto 20 323]

Definição: «bisturi»

Mais um magarefe

 

      «Um cirurgião britânico foi apanhado a utilizar um canivete suíço para abrir o peito de um paciente numa unidade hospitalar afeta ao serviço nacional de saúde do Reino Unido. O médico garante que o fez porque não conseguiu encontrar um bisturi esterilizado durante uma operação de urgência no Royal Sussex Hospital, em Brighton, Reino Unido. [...] O médico em questão assegura que, neste caso em particular, não encontrou um bisturi esterilizado, por isso resolveu usar o canivete suíço que normalmente usa para cortar fruta ao almoço» («Reino Unido. Cirurgião apanhado a operar com canivete suíço», Daniela Espírito Santo, Rádio Renascença, 3.10.2024, 15h46).

      S.O.B.! Gostava de conhecer o cromo — e ter autoridade para o pôr a lavar o chão do hospital, ou, aproveitando os recursos que já usa tão proficientemente, a descascar batatas no refeitório com o tal canivete suíço. De bisturi, a Porto Editora diz que é o «instrumento cortante utilizado em cirurgia; escalpelo». Instrumento cortante... Em medicina usam-se vários instrumentos cortantes: tesoura cirúrgica, pinça hemostática com lâminas (ou tesoura de Metzenbaum), cureta, serra óssea, osteótomo, micrótomo, lanceta... Isto sem rede, arriscando, porque sei que temos um leitor cuja mulher foi instrumentista. Há diversos tipos, e para diversos fins, de bisturis, mas eu propunha algo como isto: «Instrumento cirúrgico de lâmina afiada, esterilizado, utilizado para realizar incisões precisas em tecidos durante procedimentos médicos.» Se quiséssemos complicar, mas não queremos, podia acrescentar-se que os há feitos de material diverso (aço inoxidável, titânio, cerâmica), de forma diversa (lâmina recta ou curva), tamanho (vai por números: a lâmina n.º 10 é mais larga e arredondada, a n.º 11 é mais fina e pontiaguda, etc.). Há-os também, como não, de lâmina descartável.

[Texto 20 322]

Definição: «submunição»

Olha que não

 

      «Mas, na constelação de mísseis que surgiram no céu israelita, na madrugada de segunda para terça-feira, havia muito mais do que os novos mísseis iranianos: alguns dos destroços encontrados no solo parecem pertencer ao Shahab-3, um míssil balístico de médio alcance com uma ogiva de até 1200 kg que pode ser de natureza nuclear, química, de explosivos ou submunições, como bombas de fragmentação» («A tríade de mísseis supersónicos que Teerão usou contra Israel», Marta Leite Ferreira, Público, 3.10.2024, p. 4).

      Não posso ir para as televisões perorar sobre material bélico, claro, mas diria que a definição de submunição no dicionário da Porto Editora está errada: «cada um dos fragmentos explosivos libertados por uma bomba de fragmentação». Não, as submunições não são apenas fragmentos de uma bomba de fragmentação. São, na verdade, pequenas munições individuais, com função própria, que se encontram dentro de uma munição maior, como uma bomba de fragmentação ou um míssil de dispersão. Daí o sub-, não é?

[Texto 20 321]

Léxico: «moção de desconfiança»

É o mesmo

 

      «O primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, sobreviveu na terça-feira à segunda moção de desconfiança no Parlamento em menos de uma semana, depois de os partidos da oposição terem assegurado que, por enquanto, o Governo minoritário liberal se mantém em funções» («Trudeau sobrevive a moção de desconfiança», Público, 3.10.2024, p. 25).

      Muito, mas muito menos usada do que moção de censura, mas está igualmente certa. E, se não a vamos encontrar, como devíamos, no Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, certo é que no bilingue de português-inglês da mesmíssima editora tropeçamos em moção de desconfiança (motion of no confidence) entre os exemplos de uso da IATE. A Constituição espanhola, por exemplo, também fala em moción de desconfianza.

[Texto 20 320]

Léxico: «cruzes, credo | cruz-credo»

Quase certo

 

      «Guterres tem sido à frente da ONU o que foi à frente do Governo de Portugal: um político cuja extraordinária inteligência — tão gabada por toda gente que nem me atrevo a duvidar que exista — desemboca invariavelmente numa espectacular impotência. E ainda há quem o queira ver como Presidente da República. Cruzes credo» («António Guterres, um secretário-geral impotente e fraco», João Miguel Tavares, Público, 3.10.2024, p. 48). Andou lá perto, João Miguel Tavares. Há duas formas de o escrever: cruzes, credo (porque são originalmente duas exclamações diferentes) e cruz-credo. Para o ajudar na escolha, a Porto Editora vai dicionarizar esta última. Entretanto, aprenda aqui com Maria Guinot: «Ter de ir ao pronto-a-vestir ou à feira de Carcavelos? Cruzes, credo! Um horror, cheira a mofo e a pulguedo!» (Memórias de um Espermatozóide Irrequieto, Maria Guinot. Lisboa: Âncora Editora, 2004, p. 67).

[Texto 20 319]

 

Definição: «matéria escura/matéria negra»

Eu gosto de números

 

      «A última das suas bolsas do ERC, de dois milhões de euros, entre 2022 e 2027, destinou-se a investigar a matéria escura (um grande mistério, uma vez que não sabemos o que é nem a vemos, mas constitui mais de 26% do Universo) e a física quântica utilizando buracos negros» («Vítor Cardoso ganha oito milhões na Dinamarca para ir atrás da gravidade», Teresa Firmino, Público, 2.10.2024, p. 27). Seria um bom acrescento à tua definição de matéria escura/matéria negra, Porto Editora: «forma postulada de matéria, indetectável pela absorção ou emissão de radiações electromagnéticas, cuja presença é inferida pela observação de diferentes efeitos gravitacionais sobre a matéria visível».

[Texto 20 318]

 

 

P. S.: Afinal, Porto Editora, até tens um-dó-li-tá num verbete, em ndulé. Então, como vai saber o que significa um estrangeiro que esteja a aprender a nossa língua?