Definição: «traça»
Já não retrata a realidade
«¿Qué polillas se comen la ropa? De las cerca de 5.230 especies de mariposas nocturnas que existen en el país, apenas cinco microlepidópteros, de la familia de los tineidos, generan problemas con la ropa (en realidad, son las larvas las que se comen algunos tejidos). Y, en la actualidad, estas tienen un impacto reducido. Según el presidente de Zerynthia, “hoy en día es muy muy raro que se te coman la ropa del armario como pasaba antiguamente, no es que sea una leyenda urbana, pero ahora usamos muchos tejidos sintéticos o incluso tejidos naturales tratados, ocurre de forma muy rara, con ropa o alfombras buenas”» («La proliferación de polillas gigantes da alas a los bulos», Clemente Álvarez e Yolanda Clemente, El País, 17.06.2025, p. 31).
Veja-se bem, só 0,09562 % — arredondando, e porque somos generosos, 0,1 % — das espécies de mariposas nocturnas em Espanha têm larvas que causam problemas com a roupa. Em Portugal não será diferente, é claro, e, contudo, veja-se como a Porto Editora define traça: «1. ZOOLOGIA designação comum, extensiva a diferentes insectos lepidópteros de hábitos nocturnos (em particular aos da família dos Tineídeos, que inclui espécies cujas larvas são consideradas nocivas por se alimentarem de tecidos, danificando peças de vestuário, toalhas, etc.); 2. ZOOLOGIA (Tineola bisselliella) insecto lepidóptero, da família dos Tineídeos, atinge cerca de oito milímetros de comprimento no estado adulto, com asas amareladas que podem apresentar uma envergadura de 16 milímetros, sendo considerado uma praga doméstica pelo facto de as larvas se alimentarem de peles, lãs e materiais semelhantes, danificando peças de roupa, carpetes, etc.; traça-da-roupa; 3. ZOOLOGIA designação comum e imprecisa, extensiva a diferentes espécies de insectos considerados danosos por se alimentarem (os adultos ou as larvas) de papéis, tecidos, peles, etc.»
O que salta logo à vista (como já vimos noutros verbetes) é a redundância das acepções: as acepções 1 e 3 são praticamente equivalentes: ambas referem um uso impreciso e popular do termo, aplicado a vários insectos danosos, sobretudo lepidópteros nocturnos. Não faz sentido mantê-las como distintas. A acepção 3, aliás, parece uma versão diluída da 1. Também se nota a ausência de hierarquia entre o uso genérico e o específico: a acepção 2, que se refere à espécie Tineola bisselliella, deveria vir em segundo lugar (ou mesmo em primeiro, conforme o critério que se pretenda seguir), mas marcada como uso mais técnico ou específico, e subordinada à acepção genérica. Ora, aparece descontextualizada, como se fosse uma entrada autónoma. Depois, e isso fica patente com a citação do artigo, há falta de actualização quanto à raridade do fenómeno: o dicionário, sendo descritivo e não prescritivo, não precisa de destacar esta mudança, mas deveria pelo menos moderar o tom alarmista e apresentar o fenómeno como raro ou historicamente mais comum. Por fim, não se pode deixar de reparar na definição sem base zoológica precisa: a expressão «diferentes insectos lepidópteros» é vaga e excessiva. Em Portugal, o termo popular «traça» aplica-se sobretudo a tineídeos, e não a qualquer lepidóptero nocturno (como as grandes mariposas, que até inspiram fascínio). Usar «lepidópteros nocturnos» como critério é enganador.
Está, pois, na hora de o dicionário reflectir esta realidade e deixar de perpetuar o mito das traças devoradoras de guarda-roupas. Nem todas as mariposas são culpadas — e, hoje em dia, quase nenhuma o é. Não é caso único. Também a definição da síndrome de Tourette, durante anos, destacava a «repetição de palavrões e gestos obscenos», quando se sabe que apenas cerca de 5 % dos afectados manifestam esse comportamento. É o mesmo vício de destacar o traço mais chamativo, ainda que estatisticamente raro.
[Texto 21 439]